A contribuição de plantas e folhas das religiões de matriz africana para o ensino de Química

À esquerda, Ossaim, orixá das plantas medicinais e dos rituais (Fonte: iquilibrio.com). À direita, componentes químicos da noz-de-cola, importante nos rituais de candomblé, cujo extrato foi utilizado na produção de refrigerantes de cola, como a Coca-Cola.

Pautando a erradicação da intolerância religiosa, pesquisa desenvolvida no IQ-UFG mostra como plantas e folhas podem possibilitar a implementação da Lei 10.639/03 no ensino de Química

03 de junho de 2020 | 14:15

Caio Ricardo Faiad
Bacharel e licenciado em Química e em Letras. Doutorando em Ensino de Ciências com pesquisa no campo das Educação das Relações Étnico-raciais por meio da interdisciplinaridade entre Química e Literatura. Bato ponto nas redes, sendo conhecido no Instagram e no TikTok como “um químico nas letras”. Para me seguir, procure o @ocaiofaiad em todas as redes sociais. E o mais importante: sou um grande fã da Beyoncé.

Promulgada em 2003, a Lei 10.639, que faz parte de um conjunto de medidas de combate ao racismo, insere na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) a inclusão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira nos espaços educacionais. A disciplina do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (IQ-UFG) “Ensino de Química, Identidade e Cultura Afro-brasileira” implementa a lei por meio da difusão de representações positivas da história da população negra no Brasil. Criada pela Professora Dra. Anna Maria Canavarro Benite, a disciplina é uma iniciativa inédita no IQ-UFG por ser uma optativa livre, isto é, de acesso a qualquer aluno da instituição.

Na disciplina, os discentes aprendem a ensinar Química dialogando a abordagem conceitual (no caso, conhecimento químico) com a abordagem cultural de matriz africana. Orientados por Benite, os pós-graduandos do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão utilizam os seminários dos discentes como corpus de investigação. No artigo Dai-me agô (licença) para falar de saberes tradicionais de matriz africana no ensino de química, publicado na revista Química Nova, os pesquisadores, Anna Benite, Gustavo Faustino, Juvan Silva e Claudio Benite, todos do IQ-UFG, analisaram o seminário "Conhecimentos tradicionais de povos e comunidades de matriz africana" pela teoria bakhtiana.

 

A religiosidade afro-brasileira no ensino de Química

Os pesquisadores expõem que a cada três dias o Disque Direitos Humanos recebe uma denúncia de intolerância religiosa e no período 2013-2014 houve aumento de 273% nas denúncias. Esses dados refletem uma das facetas do racismo brasileiro que é a intolerância às religiões de matriz africana. Para os pesquisadores, a inclusão dessa temática no ensino de Química parte do pressuposto de que não há "nenhum demérito em estudar as religiões de matriz africana em todas as suas nuances", pois elas são consideradas como “foco de resistência cultural e de preservação da identidade étnica”.

Pesquisas no campo da Antropologia apontam que mistificação da liturgia das religiões de matriz africana contribui para o processo de intolerância religiosa tornando os adeptos dessas religiões vítimas de violações de seus direitos sociais, políticos, econômicos e culturais. Assim, considerando o resgate da história e cultura da África e a herança dessas culturas africanas para a formação da cultura brasileira como uma tarefa necessária no campo da pesquisa educacional, os pesquisadores pedem agô (aportuguesação de àgò que significa licença, em iorubá) para circular informações sobre as religiões de matriz africana nas práticas pedagógicas de ensino de Química.

Dessa forma, uma das propostas empregada pelo grupo de Benite foi abordar na disciplina “Ensino de Química, Identidade e Cultura Afro-brasileira”, a fitoquímica, área que estuda os componentes químicos das plantas, como ferramenta didática para que o aspecto científico e cultural de matriz africana pudessem ser explorados de forma compartilhada.

 

Plantas e folhas: das religiões de matriz africana para as aulas de Química

No Brasil escravocrata, que compreendeu o Brasil Colônia e Império, a carne mais barata do mercado era a carne negra. Como não havia preocupação com a saúde dessa parcela da população brasileira, os conhecimentos africanos sobre plantas e folhas foram usados para o combate de suas doenças e males. Posteriormente, esse saber foi incorporado ao cotidiano dos brasileiros por meio dos remédios caseiros na forma de chás. Os pesquisadores analisaram um extrato dos discursos produzidos pelos discentes sobre o uso da arruda, da jurema, do alecrim, do algodoeiro e do juá-de-capote em religiões de matriz africana.

Elementos interdiscursivos (para Bakhtin, um discurso dentro de outro discurso) foram observados pelos pesquisadores nas falas dos estudantes, como por exemplo, na de Aline (nome fictício), uma mulher negra do curso de Agronomia: “quem tem parentes que moram em interior sabe, [...] o vô já fala, o tio já fala, vamos pegar umas folhas pra fazer um chá pra curar a gripe”. Além de anunciar o tecido social de Aline, os pesquisadores interpretam nesse discurso a referência à ancestralidade um dos valores civilizatórios africanos , pois Aline atribui ao conhecimento popular vindo de África a aplicação medicinal que algumas plantas utilizadas em religiões de matriz africana possuem: “as plantas, como a gente pode observar, há muito tempo são utilizadas como aplicação medicinal, lá na África, nos países africanos”.

Os pesquisadores partem da ideia de que um dos interesses da Química é a “relação estrutura-atividade”, que compreende o estudo dos efeitos que a estrutura de um composto pode causar durante sua interação com o receptor biológico. Essa relação foi encontrada nas enunciações de Marcelo (nome fictício) quando fala sobre a jurema: “você falou muito de jurema e ela não é usada só em defumação. Ela é alucinógena e produz uma substância psicoativa, também a mesma da Iouasca [sic], e elas são usadas no sertão de Pernambuco, pelo menos eu conheço de lá, têm umas tradições que usam por seu efeito psicoativo” (negrito dos pesquisadores).

 

Em busca de uma educação antirracista

Diversos outros turnos dos discursos produzidos pelos discentes foram analisados na pesquisa. À medida que as “relações estrutura-atividade” são mencionadas, os pesquisadores apresentam algumas estruturas químicas como ácido gálico, graveolinina, quercetina, rutina, entre outras. Nessa pesquisa, portanto, os pesquisadores conseguem demonstrar que é possível inserir a Lei 10.639/03 no ensino de Química por meio das contribuições dos povos e comunidades de matriz africana (os saberes tradicionais) e suas relações com o conhecimento científico. Assim, a inclusão dos valores civilizatórios daqueles que foram trazidos e que aqui se mantêm resistentes às violências e violações de direitos podem transformar os currículos eurocêntricos e possibilitar a implementação de uma educação antirracista, inclusive, no ensino de Química.

Ficou interessado? Leia a pesquisa original:

BENITE, Anna Maria Canavarro; FAUSTINO, Gustavo Augusto Assis; SILVA, Juvan Pereira da; BENITE, Claudio Roberto Machado. DAI-ME AGÔ (LICENÇA) PARA FALAR DE SABERES TRADICIONAIS DE MATRIZ AFRICANA NO ENSINO DE QUÍMICA. Quím. Nova,  São Paulo,  v. 42, n. 5, p. 570-579,  Mai. 2019 .  Disponível: <http://static.sites.sbq.org.br/quimicanova.sbq.org.br/pdf/v42n5a12.pdf>. Acessado em 10 abr 2020.