Pesquisa sobre o interesse por temas políticos de candidatos do ENEM aponta que esses temas também deveriam ser abordados na educação científica.
10 de junho de 2020 | 15:16
Luciene Fernanda da Silva é licenciada em Física pela UNESP (campus Guaratinguetá), onde foi bolsista em 2010 e 2011 do primeiro subprojeto PIBID do curso. Assim que se formou, ingressou no PIEC-USP onde defendeu o mestrado e o doutorado. Atualmente é professora do IFRJ (campus Nilópolis), atua na Licenciatura em Física além de dar aulas em turmas do ensino médio técnico e profissionalizante. Participa do grupo de pesquisa GEMEC (Grupo de Estudo de Materiais Educacionais em Ciências), além de orientar TCC dos licenciandos do curso em diversos temas. Tem interesse nas áreas: formação de professores; ensino e aprendizagem de Física; história e filosofia da Ciência; Ciência e arte; divulgação científica; currículo... e tudo mais que tiver a ver com Física, Educação e Ciências Humanas. Na vida tem muitos interesses: de teatro a yoga; de culinária (de preferência vegetariana) a esportes; de literatura a passeios na natureza!
Nas escolas, é comum que discussões de temas políticos se concentrem nas aulas de disciplinas das chamadas Ciências Humanas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia). Porém, pesquisadores e educadores defendem que essas discussões também deveriam ser abordadas no contexto das disciplinas das Ciências da Natureza (Biologia, Física e Química). Tudo isso visando um currículo escolar que envolva a preparação dos estudantes para o exercício da cidadania, algo em discussão no meio educacional desde a década de 1960.
Qual é a relação entre a educação científica e os temas políticos? Por que ela é importante? Como esses temas podem estar presentes nessas disciplinas? A pesquisa desenvolvida pelos professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Matheus Nascimento, Nathan Lima, Cláudio Cavalcanti e Fernanda Ostermann ajudam a elucidar tais questões.
Nesse estudo, os pesquisadores utilizaram dados obtidos no questionário socioeconômico respondido por estudantes que realizaram o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Esses dados - o desempenho no exame; o interesse em diferentes temas políticos; e o que os pesquisadores chamaram de índice de capital econômico e cultural - foram interpretados a partir de reflexões do sociólogo francês Pierre Bourdieu.
O questionário socioeconômico do ENEM
A análise estatística cruzou três conjuntos de dados obtidos nos questionários socioeconômicos do ENEM. O cruzamento desses conjuntos de dados foi fundamental para que os pesquisadores conseguissem, nessa análise, observar as relações entre eles em busca de respostas ao que se propuseram investigar: a relação dos interesses dos estudantes em temas como política, globalização, discriminação racial e social com o desempenho deles no exame e, também, com o seu nível socioeconômico.
Um dos conjuntos de dados é o índice de capital econômico e cultural (ICE_ICC). O capital econômico envolve informações como renda familiar e bens materiais e o capital cultural, o nível de instrução dos pais, o tipo de escola que o estudante frequentou, entre outras. Considerados em conjunto, o ICE_ICC indica o extrato social e cultural do estudante. Os outros conjuntos de dados são o desempenho no exame e a manifestação de interesse por política, globalização, desigualdade social, racismo e machismo.
Como resultado, percebeu-se que o maior interesse pelos temas política e globalização é manifestado por estudantes com melhor desempenho no ENEM, em qualquer um dos grupos do ICE_ICC (do mais baixo ao mais alto). Dessa forma, o acúmulo de capitais (econômico e cultural) não define objetivamente o interesse por esses dois temas. Os estudantes mais envolvidos com sua educação formal, de qualquer grupo do ICE_ICC, entendem que esses temas são importantes para o melhor desempenho no exame. No entanto, a manifestação de interesse pelos temas desigualdade social, racismo e machismo é aproximadamente o mesmo para todos os grupos de ICE_ICC independentemente da proficiência do candidato no ENEM. Como explicar essa diferença?
Interpretando a partir de Bourdieu
O sociólogo Pierre Bourdieu, em estudo baseado em entrevistas realizados por institutos de pesquisa da França e publicado no final da década de 1970, identificou que o gosto de um indivíduo, seja por arte ou política, está intimamente relacionado com o volume e com a estrutura de seus capitais, o que evidencia a desigualdade entre classes e entre gêneros.
Neste estudo, Bourdieu observou que pessoas detentoras de maior capital econômico, tinham a possibilidade de se dedicar mais às questões políticas, inclusive tornando-se lideranças e assumindo cargos. Comparando indivíduos em diferentes níveis de capital cultural, Bourdieu observou que pessoas com menor grau de instrução (ou seja, detentoras de menor capital cultural) tenderam a não responder perguntas sobre política externa ou economia em comparação com pessoas com nível de estudo elevado. Essa diferença, entretanto, diminuiu sensivelmente quando as questões eram de natureza mais prática e próximas da vivência dos entrevistados.
Com base nesse estudo, os professores da UFRGS puderam então, perceber que os resultados da análise estatística do questionário socioeconômico do ENEM indicam que grande parte dos estudantes brasileiros não entende que o debate político ou o econômico fazem parte de sua vida, assim como o racismo, o machismo, a desigualdade social. Isso pode ser atribuído tanto pela falta de representatividade política, já que poucas lideranças políticas que alcançam altos cargos são da mesma classe social que esses estudantes, quanto pelo sistema educacional que, em sua própria estrutura organizacional, ajuda a excluí-los do debate político e econômico.
Como a educação científica pode atuar
Muitas vezes as disciplinas de Ciências da Natureza se pautam em propostas didáticas positivistas. Essas orientações são problemáticas por, dentre tantos motivos, propagar uma visão de Ciência neutra, cujos produtos só confeririam benefícios à sociedade. Uma visão acrítica que não condiz com a realidade, visto que os produtos da Ciência não são sempre positivos e seu acesso não está isento de influências políticas, econômicas ou sociais, e que reforça, assim, o desinteresse em temas políticos mais distantes da realidade imediata dos alunos.
Os pesquisadores, então, propõem que perspectivas do movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) representam uma alternativa, já que são capazes de trazer questões políticas e econômicas para o centro do processo didático. Pelo viés dessas abordagens, é possível, inclusive, valorizar a Ciência, indicando o papel central que pode desempenhar no entendimento de diferentes problemas sociais. Segundo os pesquisadores, trazer questões políticas para a Educação em Ciências proporciona um duplo benefício: permite aos alunos uma melhor formação cidadã e propicia uma melhor formação científica, pois a Ciência ensinada nessas perspectivas é realista.
A Educação em Ciência sob o movimento CTS, enfim, pode ser uma ferramenta no combate à exclusão social, como defendido por esses pesquisadores.
Ficou interessado? Leia a pesquisa original:
Artigo: NASCIMENTO, Matheus Monteiro; et al. Cultura política, desempenho escolar e a Educação em Ciências: um estudo empírico à luz de Pierre Bourdieu.Ciência & Educação, v. 25, n. 2, p. 431-447, 2019. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/ciedu/v25n2/1516-7313-ciedu-25-02-0431.pdf />. Acessado em: 20 mai. 2020.