A Química através de múltiplas lentes: um olhar para sua natureza

As múltiplas lentes da Química expressas por meio dos modos de pensar e falar sobre Química. Fonte: fotomontagem via canva.com. Crédito: unsplash/rawpixel.com/pxhere.com/pexels.com/pixnio.com

A Química pode ser lida através de múltiplas lentes condicionadas por fatores sociais, históricos e culturais. Qual(is) lente(s) você usa?

Márcio Gildeon Soares da Silva

Olá, me chamo Márcio Gil, sou graduando em Ciências e Tecnologia/UFRN e Mestrando no Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática/UFRN. Tenho interesse por linhas temáticas como: Ensino de Química, Experimentação no Ensino de Ciências e Química, Popularização da Ciências, Divulgação Científica, Divulgação Química, Filosofia da Química, Natureza da Química e Neurociências Aplicada à Educação. No âmbito pessoal, minha vida se resume a casa, jogos, livros, filmes e séries. Com uma curiosidade aguçada, busco explicações para alguns padrões tradicionalmente aceitos.

@omarciogil

24 de setembro de 2024 | 10:00

Você já parou para pensar com qual lente você enxerga a Química? Aqui, reconheceremos a pluralidade da Química através de 6 lentes distintas. O ponto de partida para caracterização dessas lentes decorre de trabalhos publicados sobre aspectos históricos, filosóficos e sociológicos da Química, por destacar a sua particularidade central na esfera científico-tecnológica e a sua pluralidade, o que possibilita um afastamento de uma visão única dessa ciência. Sendo assim, esse texto é um recorte de uma tese de doutorado de Melquesedeque da Silva Freire (2017) orientada à compreensão de características da natureza do conhecimento químico. Nela, os pesquisadores mostram que, para além do âmbito científico e filosófico, a compreensão sobre a Química pode ser enriquecida de elementos do contexto social, da linguagem e da cultura, o que resulta nas múltiplas lentes que nos permite enxergar essa ciência.

Os pesquisadores obtiveram esses resultados a partir de uma base empírica. A pesquisa foi realizada por meio da observação e análise do discurso de licenciandos em Química durante um curso de formação complementar sobre Filosofia da Química, oferecido em uma universidade pública brasileira. Além disso, foram analisadas publicações sobre a história e filosofia da Química, e levantados trabalhos sobre concepções informais acerca dessa ciência. O exame dialógico desses dados resultou na sistematização de seis visões distintas sobre a Química, com raízes na natureza do conhecimento químico, sua essência e seus valores. 

Por que é possível pensar sobre uma mesma coisa, mas de formas diferentes? A teoria dos perfis conceituais.

Você sabe o que é uma teoria? Em ciências, uma teoria pode ser compreendida como um conjunto de ideias e suposições organizadas coerentemente, fundamentadas em evidências, com o propósito de fornecer explicações sobre fatos e aspectos da realidade em determinada área específica de conhecimento. Nesse sentido, buscando compreender como as pessoas exibem diferentes maneiras de conceitualizar o mundo em contextos diversos, surge a teoria dos perfis conceituais. Essa teoria foi inspirada a partir das ideias de Gaston Bachelard, na qual é possível traçar um perfil epistemológico de qualquer indivíduo em relação a um determinado conceito científico, em função do nível de conhecimento e suas experiências em determinada área.

Por que teoria dos perfis conceituais? Essa teoria busca explicar por que e como as pessoas exibem diferentes modos de ver e enxergar o mundo em diferentes contextos. Trata-se de modelos que representam os diversos modos de pensamento de cada indivíduo, expressos como zonas que representam distintas formas de pensar e falar, dentro do seu contexto sociocultural e diferentes domínios de experiências. A teoria dos perfis conceituais serve para compreender os diferentes modos de pensar sobre um determinado conceito. 

Mas o que é um conceito? Do ponto de vista da teoria em discussão, conceitos estão estreitamente associados à produção de significados socialmente aceitos, portanto, relativamente estáveis, existindo na linguagem cotidiana e nos sistemas de conhecimento. Nessa perspectiva, os significados como construções sociais são negociados nas relações interpessoais, quando duas ou mais pessoas podem compartilhar o significado de uma palavra, ainda que variem nos sentidos que atribuem a ela. A palavra se torna, desse modo, portadora do conceito.

A Química a partir de múltiplas lentes: os diferentes modos de pensar sobre a Química.

No contexto estudado, foram sistematizados em uma matriz de significados, distintos modos de pensar sobre Química, abrangendo compromissos ontológicos, que destacam características essenciais da Química, a ciência das substâncias, dos processos e os esquemas conceituais; os compromissos epistemológicos, modos de produção do conhecimento químico, as características das explicações química, e axiológicos, os valores associados à prática científica. A partir dessa matriz de significados, foi construído o perfil conceitual de Química modelado em seis visões (zonas) distintas que descrevem e caracterizam a Química sob diversos aspectos teóricos e práticos. Logo, podemos considerar as zonas de perfil conceitual da Química como “lentes”, isto é, instrumentos pelos quais enxergamos um objeto ou uma realidade de maneira específica e típica.

De forma resumida, a primeira lente, denominada monista, expressa um modo de enxergar a Química como essência da realidade e como uma entidade presente em tudo que nos cerca, como por exemplo; “tudo é Química”. As pessoas que visualizam a Química por meio da lente aversiva, apresentam uma visão negativa da Química, ao considerá-la como um agente poluidor, de contaminação e adulteração, a exemplo; “a Química é perigosa”. Sob a ótica da lente epistêmica, a Química é vista como sendo um conhecimento, um saber sistematizado, área de conhecimento ou uma disciplina escolar, por exemplo; “(...) ciência que estuda a transformação da matéria”. 

A lente pragmática, de tradição cultural, apresenta visões que vinculam a Química ao contexto prático, ao aplicado e industrial, a exemplo; “Nas indústrias alguns métodos de separação, flotação, na fabricação de remédio”. Se a Química for vista através da lente processual, a Química será representada por processos e eventos que ocorrem com entidades específicas; processo, relação, transformação, mudança, como exemplo; “Uma interação, uma cadeia de elementos químicos, para se formar um determinado composto”. Através da lente atrativa a Química é vista como sendo um sentimento, atração, empatia ou afinidade entre pessoas, a exemplo; “A palavra Química nesse caso se refere a algo bom, pode ser relacionada à afinidade ou aos próprios sentimentos”.

As zonas propostas para o perfil conceitual têm se mostrado eficazes na caracterização semântica das percepções relacionadas ao conceito de Química em variados contextos e situações que exigem uma compreensão mais detalhada dessa noção.

Natureza da Química: implicações didáticas.

O presente estudo contribuiu para enfatizar os diversos aspectos que caracterizam o conhecimento, a prática Química e uma reflexão sobre seus métodos e processos empregados, a partir de diferentes domínios. Além disso, a proposição de diferentes visões sobre o conceito Química, por meio do aporte da Filosofia da Química, abre espaço para reflexão e compreensão dos diferentes modos de conceituá-la. Essas compreensões são úteis, inclusive, para relacionar as diferentes formas de pensamento sobre o conceito de Química em sala de aula ou no âmbito da divulgação científica relacionada a essa ciência. Essa abordagem possibilita a produção de sentidos e significados e o questionamento de ideias implícitas tradicionalmente aceitas. Sob a ótica do processo de ensino e aprendizagem, esse estudo, aponta caminhos para a tomada de decisões curriculares e práticas educacionais que englobe a natureza da Química no ensino, considerando a sua pluralidade.

Leia o texto completo em:

FREIRE, Melquesedeque da Silva. Perfil conceitual de Química: contribuições para a análise da natureza da Química e do seu ensino. 2017. 256 f. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife.

Leituras complementares:

FREIRE, Melquesedeque da Silva.; TALANQUER, Vicente; AMARAL, Edenia Maria Ribeiro do. Conceptual profile of chemistry: a framework for enriching thinking and action in chamistry education. International Journal of Science Education, n. 5, v.41, p. 674-692, 2019.

FREIRE, Melquesedeque da Silva.; AMARAL, Edenia Maria Ribeiro do. Perfil conceitual de Química: uma ferramenta heurística para a análise de concepções sobre a Química. Revista Electrónica de Enseñanza de las ciências, v. 20, n. 2, p. 217-244, 2021.