A reforma do ensino médio e as causas da revolta nas escolas

Legenda: Estudantes participam do 2º Ato pela Revogação do Novo Ensino Médio na Avenida Paulista, São Paulo(SP), em 19 de abril de 2023. Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil.

O egresso do PIEC-USP José Alves da Silva, atualmente professor da Unifesp e membro da REPU, explica os motivos que levaram estudantes às ruas contra o Novo Ensino Médio.

José Alves da Silva é atualmente professor da Unifesp-Diadema. É licenciado em Física (IF-USP), mestre em ensino de ciências-física (Interunidades em Ensino de Ciências da USP) e doutor em educação (FE-USP). Pesquisa adolescência e ensino de ciências. É membro da REPU (Rede Escola Pública e Universidade). Coordena o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (Unifesp).

03 de julho de 2023 | 10:00

O ensino médio é, possivelmente, o principal gargalo do sistema educacional brasileiro. Os números referentes a este nível de ensino são alarmantes: apesar da proporção de jovens com mais de 25 anos com ensino médio completo ter aumentado até fins de 2019, passando de 45,0% em 2016 para 48,8% em 2019, mais da metade (51,2% ou 69,5 milhões) dos adultos não concluíram essa etapa educacional[1]. Não bastasse esse número assombroso, há desigualdades nas diferentes regiões do Brasil e entre raças: no Nordeste, pouco mais de 60% não completaram o ensino médio; entre as pessoas de cor branca, 57,0% tinham concluído essa etapa escolar no país, enquanto o número era de 41,8% entre pretos ou pardos (isso antes da pandemia; é provável que tenha havido piora neste quadro). Dentre os principais motivos para a evasão escolar no ensino médio, os mais apontados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). Entre as mulheres, destaca-se ainda gravidez (23,8%) e a necessidade de cumprir afazeres domésticos (11,5%).  Entre os brasileiros de 19 anos, 36,5% não concluíram o ensino médio em 2018 e, entre esses, 62% não frequentam mais a escola e 55% pararam de estudar ainda no ensino fundamental. Em valores absolutos, cerca de 500 mil jovens brasileiros abandonam a escola no primeiro ano do ensino médio.

Sabendo desses dados oficiais (os quais são anteriores à pandemia; aguardamos para conhecermos os dados atuais), o governo de Michel Temer, em 2016, propôs uma reforma para o ensino médio que se restringiu, apenas, a mudanças no currículo. Nenhum dos pontos gravíssimos citados no parágrafo anterior foi sequer atacado tangencialmente. De acordo com a reforma, as escolas de ensino médio deveriam oferecer, pelo menos, 3000 horas aos seus alunos (anteriormente eram 2400 horas), garantindo 1800 horas para a formação geral básica associada à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o restante da jornada (no mínimo 1200 horas) para uma parte diversificada que, por sua vez, é composta, em sua maior parte, por itinerários formativos. Note-se, portanto, a redução da carga horária da formação geral básica das anteriores 2400 horas para as atuais 1800 horas. Segundo a reforma, as redes de ensino teriam plena liberdade para oferecer novas disciplinas (chamadas de componentes dentro dos cinco itinerários propostos) nas demais 1200 horas. Mais do que isso, a reforma foi vendida em propagandas ao prometer que o aluno teria conteúdos mais interessantes, que haveria autonomia para estudar o que ele quisesse, que teria formação profissionalizante juntamente com o ensino médio regular e que haveria mais organização curricular das escolas porque a reforma acabaria com o excesso de disciplinas do ensino médio antigo. 

Essa reforma foi implementada, inicialmente, via medida provisória (no.746/2016) depois de apenas três semanas que Michel Temer tinha assumido definitivamente a presidência da república após o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Não houve quem não estranhasse o fato de um governo ter tido a coragem de fazer uma reforma no nível de ensino mais difícil do mundo via medida provisória, ainda mais feita por um governo com problema generalizado de legitimidade social. Importante dizer que esta reforma tinha sido rechaçada pela Presidente Dilma meses antes de ela sofrer o golpe (ao contrário do que se diz falsamente por aí).

À época de sua aprovação no Congresso, houve muita resistência de estudantes e professores contra a reforma. Ocorreram ocupações de escola e manifestações de rua e no congresso. Infelizmente, essa resistência não teve sucesso à época. Naquela ocasião, lembro-me de Mônica Ribeiro, maior pesquisadora de ensino médio no Brasil, ter dito numa live que a reforma geraria revoltas quando chegasse às escolas. É o que temos presenciado no atual momento. 

E aqui elenco algumas das principais razões para explicar a revolta da comunidade escolar contra a atual reforma do ensino médio. Cabe ressaltar que houve diferenças entre os estados, sendo que alguns foram mais cuidadosos na implementação das principais medidas. Para não cometer injustiças, vou descrever a seguir prioritariamente os gargalos encontrados na rede estadual paulista, posto que tenho obtido dados desta rede porque participo atualmente de uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que trata, objetivamente, do acompanhamento da reforma em algumas escolas públicas paulistas. Seguem esses pontos.

  1. Indignação contra a redução de disciplinas da formação básica. Para se ter uma ideia: na terceira série do ensino médio, os alunos da rede pública paulista passaram a ter, por semana, apenas duas aulas de Língua Portuguesa e duas de Matemática. Todas as demais são de disciplinas dos itinerários formativos com quase nada de conteúdos. Comparemos: na mesma série, os filhos da classe média e alta costumam ter aulas de reforço, revisão de conteúdos e simulados nas aulas regulares, além de cursinhos caros no contraturno. Tudo isso porque é o último ano da educação básica e eles precisam se preparar melhor para o ensino superior.  
  2. Quem cuida da formação dos professores que ficaram responsáveis pelas disciplinas dos itinerários? As disciplinas dos itinerários são de assuntos bem gerais e vagos, sobretudo porque não se tem clareza, exatamente, do que é para ser ensinado. Em geral, essas disciplinas buscam fazer com que as áreas diferentes dialoguem entre si – o que exige muito boa formação dos professores e estudos sistemáticos sobre cada tema a ser ensinado para que haja uma articulação boa entre os conhecimentos das áreas. Ocorre que a reforma não previu um tostão a mais para formação de professores. O resultado é o que vemos: os itinerários ficaram vagos, com pouco conteúdo, com professores inseguros para ministrá-los diante dos seus alunos. Ademais, há a previsão de oferta de disciplinas eletivas – o que pode ser interessante. Porém, pelo Brasil, já foram identificados temas como “Brigadeiro caseiro”, “Mundo PET”, “RPG”, “Como se tornar um milionário!” etc. Em São Paulo, na parte diversificada, há desde Empreendedorismo (obrigatório) até eletivas para ensinar maquiagem.
  3. Escolas sem infraestrutura para oferecerem opções de itinerários aos estudantes. Se uma única escola conseguir oferecer, por exemplo, os 10 itinerários formativos propostos em São Paulo (aqui excluo o profissionalizante), ela precisará ter professores para ministrarem 276 disciplinas (!). Não há gestor escolar que administre isso. Não há nem espaço físico para comportar as horas de estudo e de preparo de aulas deste professor. Não há salas de aula disponíveis para elas serem ofertadas. Por isso, as escolas, em média, oferecem de um a dois itinerários apenas. Pesquisa da Rede Escola Pública e Universidade (REPU) mostrou que, quanto mais está localizada em lugares pobres, menos itinerário uma escola oferece aos seus alunos. As falácias de que a reforma reduziria a quantidade de disciplinas antigas e de que o aluno teria autonomia para escolher os itinerários foram escancaradas. É assombroso o número de disciplinas atuais nas escolas de ensino médio para cada turma. 
  4. Não há professores para os itinerários. Por isso, as escolas estão contratando todo tipo de profissional sem formação para dar aulas para adolescentes (que é um dos trabalhos que mais exigem especialização no mundo todo): dentistas, administradores de empresas, bacharel em direito, engenheiros etc.  Esses profissionais têm implorado por material e formação aos diretores de escola para seguirem com as aulas. Em pesquisa ora em andamento pela Fapesp, são inúmeros os relatos de diretores e coordenadores que narram o desespero desses profissionais quando vão oferecer essas disciplinas. 
  5. Como ficam os licenciados que, de fato, atuam nas redes? Os professores que têm licenciatura e dão aulas nas redes fogem o quanto podem das disciplinas dos itinerários, preferindo dar aulas dos assuntos que estudaram. Porém, como a quantidade de aulas de suas matérias foi reduzida, eles pegam muito mais turmas para completar a jornada, aumentando enormemente seu cansaço, tornando inviável conhecer seus alunos. Mais do que isso: esses professores fogem do ensino médio, abrigando-se no fundamental II. Trágico para os adolescentes do ensino médio, portanto, que perdem os professores mais bem formados. 
  6. Sobrecarga maior ainda dos docentes. Até professores de escolas particulares narram um aumento do trabalho para cumprirem sua jornada após a reforma do ensino médio. Com a redução de suas disciplinas, eles são obrigados a pegarem mais turmas ou a assumirem as disciplinas dos itinerários. Na rede pública paulista, por sua vez, há numerosos casos de professores que assumem mais do que cinco disciplinas em um único semestre – e para diferentes turmas! Na pesquisa que participo atualmente, é comum haver relatos de alunos que sequer sabem qual disciplina um determinado professor oferece (encontrei um único professor ministrando cinco disciplinas para uma única turma). Em todas as escolas que passei, encontrei relatos de alunos que pedem aos seus professores de itinerários para ministrarem apenas o conteúdo em que são formados. 
  7. Aumento de aulas vagas. Os diretores estão há meses tentando atribuir aulas dessas disciplinas dos itinerários, mas sem sucesso. Muitos profissionais aceitam pegá-las e desistem quando entendem o que é para fazer na prática. No ano passado, em agosto, 22% das aulas desses itinerários não tinham sido atribuídas desde o começo do ano. Para o noturno, eram quase 28%. Isso significa que, dessas 3 mil horas do ensino médio, quase mil horas serão de aulas vagas. 
  8. Parte profissionalizante é enganosa. De acordo com a reforma, a parte diversificada teria, supostamente, o objetivo de preparar o aluno para o mundo do trabalho. Ocorre que, para a maioria das profissões, é necessário fazer estágio, cursar determinados conteúdos e outras regulações profissionais. Nada disso é proposto na reforma. Há uma previsão de ofertas de cursos profissionalizantes mais relacionados a atividades precárias de trabalho, numa concepção aligeirada do que é formação profissional. É isso o que se está propondo de formação profissional. 
  9. A reforma do ensino médio não prevê nenhum recurso a mais para a construção de novas escolas. Pelo contrário, pesquisa recente da REPU revela que foram fechadas cerca de 3 mil escolas pelo Brasil entre 2008 e 2020, período que coincidiu com o aumento de escolas de ensino médio em tempo integral. Isso ocorreu, sobretudo, pela redução absurda de matrícula no noturno (um milhão e 800 mil vagas a menos). Porém, depois de 2020, já com a reforma em andamento, a situação está se agravando. Para dar conta de aumentar a carga horária do noturno, os governos estaduais preveem que as aulas comecem mais cedo (o que inviabiliza a presença do aluno trabalhador) ou que essas aulas sejam cumpridas a distância – e todos sabemos do fracasso de aulas remotas para esse público. Há um caso de uma escola paulista que tinha 14 turmas de noturno em 2021 e que hoje oferece apenas três turmas porque não há alunos que possam chegar nela às 17h.
  10. Toda essa situação, obviamente, resvala nas universidades. Ao prever que qualquer profissional possa dar aulas de qualquer assunto (na prática, é o que temos visto), os cursos de licenciatura passam a ser ainda mais desvalorizados e menos procurados. Porém, a situação também atinge outras carreiras. Um estudante do ensino médio escolhe o itinerário formativo hoje, em média, com 14 e 15 anos de idade. Se ele escolher um itinerário mais relacionado às ciências humanas nesta idade, jamais terá acesso a um conhecimento de outra área em toda a sua trajetória escolar – e isso fará com que ele não conheça um leque maior de opções profissionais por desconhecê-las. Não bastasse isso, as universidades também são construídas, fundamentalmente, a partir das áreas.

Em suma, é este o quadro que temos. A atual reforma é defendida apenas pelas fundações empresariais que disputam o dinheiro da educação pública e pelos secretários estaduais de educação  que, em sua maioria, são muito próximos das próprias fundações (são indicados por elas ou são ex-funcionários delas). A criação de tantas disciplinas, sem nenhum aumento de verba para dar condições de infraestrutura e preparo para os professores e gestores, parece ter o objetivo maior de vender materiais e cursos que essas fundações elaboraram. Na prática, a realidade das escolas inviabiliza a implementação da reforma e atua perversamente para que haja um aumento brutal da desigualdade nos sistemas de ensino.

Assim, o melhor a se fazer é revogar a reforma e iniciar imediatamente a construção de um novo ensino médio. Os pesquisadores de ensino médio sabem bem o que precisa ser feito para conseguirmos que esta etapa de ensino seja mais inclusiva, sólida e acolhedora, e que atenda bem aos nossos jovens e ao nosso país. É o que esperamos e é o que eles merecem.

1É o que mostra o módulo Educação, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2019, divulgado pelo IBGE em 2019.

 

Referências:

Rede Escola Pública e Universidade (REPU). Nota Técnica. Impacto da Expansão do Tempo Integral sobre as matrículas de Ensino Médio nas redes estaduais do Brasil (2008-2020). Disponível em: < https://www.repu.com.br/notas-tecnicas>. Acesso em 4 de maio de 2023.

Rede Escola Pública e Universidade (REPU). Nota Técnica. Novo Ensino Médio e indução de desigualdades escolares na rede estadual de São Paulo. Disponível em: < https://www.repu.com.br/notas-tecnicas>. Acesso em 4 de maio de 2023.

JACOMINI, Márcia. Realidade das escolas públicas impede execução do Novo Ensino. Disponível em:  Médio.  https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2023/03/15/realidade-das-escolas-publicas-impede-execucao-do-novo-ensino-medio.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 04 de maio de 2023.