Estudo envolvendo o posicionamento de estudantes a respeito da eugenia reforça que suas visões de mundo influenciam no aprendizado de conteúdos científicos
04 de fevereiro de 2021 | 10:00
Guilherme Balestiero da Silva
Licenciado em Química pela UNESP e pela Universidade de Coimbra, Portugal, é doutorando em Ensino de Ciências, modalidade Ensino de Química, pelo PIEC USP. Durante toda a sua formação acadêmica atuou duas vezes como bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), o que ampliou consideravelmente seu interesse por tópicos de investigação relacionados a educação científica. Atualmente, membro do Grupo de Pesquisa em Ensino de Química do IQSC, desenvolve trabalhos pautados na linguagem e na divulgação cientifica, em particular no ensino superior de química, pois acredita que, frente ao cenário político e social que se estabeleceu no Brasil, uma comunicação pública da ciência eficaz nunca foi tão necessária quanto agora.
E se pudéssemos selecionar as partes do DNA que estariam presentes nos nossos filhos e nas próximas gerações? Essa é uma suposição que evidencia as implicações do desenvolvimento científico na sociedade e a existência de conflitos morais envolvendo a manipulação genética de seres humanos. De difícil solução, o posicionamento diante de questões como essas, também conhecidas como questões sociocientíficas, envolve o que o professor da Universidade da Carolina do Norte Troy Sadler denomina de raciocínio moral.
Diante da existência de poucos estudos nacionais a respeito de aspectos éticos ligados ao ensino de ciências, os pesquisadores Márcio Guimarães e Mônica Oliveira da Universidade Federal de Sergipe (UFS), e Washington Carvalho, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), realizaram uma investigação que lhes permitiu identificar como alunos do ensino médio percebem e interpretam questões relacionadas à eugenia. No artigo, publicado no ano de 2010 na revista Ciência & Educação, os pesquisadores, a partir de um estudo fenomenográfico, isto é, um tipo de investigação que possibilita estabelecer o modo como as pessoas veem o mundo, reforçam que as representações sociais dos alunos, oriundas de diferentes realidades, afetam o aprendizado dos conteúdos científicos.
Arquitetando seres humanos
Um dos objetivos da ciência é melhorar a qualidade de vida da população, no entanto, questionamentos éticos envolvendo tópicos da engenharia genética como a clonagem humana nos levam a perguntar: até onde a ciência pode ir? É nos limites da sua atuação que nos deparamos com a eugenia. Do grego bem-nascido, esse termo se refere à manipulação genética de seres humanos que pode ser classificada em positiva ou negativa. A eugenia positiva tem como objetivo a melhoria das características dos seres humanos, como a inteligência. Já negativa busca eliminar fatores que poderiam causar sofrimento aos indivíduos, como o gene responsável pela Doença de Huntington, uma condição degenerativa que é hereditária.
De natureza polêmica, tópicos como a eugenia, que permitem discutir a respeito dos limites da atividade científica, têm grande valor no ensino de ciências. Para os pesquisadores, a inserção desse tipo de questão em sala de aula pode contribuir significativamente na preparação dos estudantes para o exercício da cidadania, o que, frente ao cenário político e social da atualidade, se relaciona fortemente com as necessidades da educação brasileira.
Tomando partido
Posicionar-se diante de problemáticas como a eugenia não é fácil. Uma série de estudos sugere que, para a sua resolução, não basta termos conhecimento das informações que aprendemos na escola. Questões emotivas e afetivas também influenciam o nosso julgamento. Mas, então, qual seria o papel do conhecimento científico quando somos solicitados a tomar uma decisão sobre questões envolvendo as suas implicações?
No estudo desenvolvido pelos pesquisadores, foram realizadas entrevistas com cinco estudantes do ensino médio que tiveram que se posicionar diante de dois cenários: A manipulação genética para fins terapêuticos (eugenia negativa) e para fins estéticos (eugenia positiva). A partir da fala dos alunos, os pesquisadores classificaram as suas respostas em seis categorias. Com base nas respostas dos estudantes, os pesquisadores identificaram dois grupos de alunos: aqueles que têm o posicionamento influenciado por aspectos religiosos e os que não têm. Sobre os diferentes tipos de eugenia, independente do grupo, todos foram contrários à eugenia positiva, ou seja, à manipulação genética com objetivos estéticos. Contudo, o grupo não religioso se mostrou favorável à eugenia negativa, aquela para fins terapêuticos.
Os pesquisadores também identificaram outras categorias interessantes, como a distinção entre o ser humano e outros animais. Nesse sentido, terapias genéticas envolvendo o gado, por exemplo, seriam mais aceitáveis do que em seres humanos. Outro conjunto de afirmações se refere ao fato de que, se permitida, poucos teriam acesso a técnicas de eugenia, o que aumentaria ainda mais as desigualdades sociais. Dessa forma, foi possível observar, mesmo em um grupo pequeno de alunos, uma variedade de posicionamentos que reflete o que ocorre em sala de aula da educação básica. No entanto, para os pesquisadores, “nós professores esquecemos que nossos alunos são oriundos de diferentes realidades e que suas visões de mundo, ou representações sociais, afetam a forma como vão apreender um determinado conteúdo científico.”
As visões de eugenia e a formação de professores
Complexas, questões sociocientíficas não contam com respostas certas ou erradas, mas com possibilidades. O estudo em que os pesquisadores buscaram observar o posicionamento de alguns estudantes a respeito da eugenia reforça a pluralidade de ideias e visões que os seres humanos têm sobre o mundo. Essas visões, que são formas particulares de compreender e se comunicar, muitas vezes se chocam com as dos professores, o que pode levar a um aprendizado de ciências insatisfatório.
Nesse sentido, promover em espaços formativos a discussão sobre as mais variadas questões sociocientíficas se torna promissor para o ensino das ciências. Contudo, desponta como necessidade, no campo da formação de professores, o desenvolvimento de estratégias que os auxiliem a superar as demandas desse tipo de abordagem. Dentre elas, destaca-se a capacidade do professor de lidar com aspectos que transcendem aos conteúdos científicos tradicionais, tais como as emoções e visões de mundo que os alunos possuem.
No mais, com destaque para a eugenia, algo que disseminou, em meio ao século XX, uma espécie de “racismo legitimado pela ciência”, sua discussão se torna propícia para abordar uma perspectiva antirracista de educação em salas de aula do ensino das ciências.
Quer saber o que mais? Acesse o artigo original em:
GUIMARÃES, Márcio Andrei; CARVALHO, Washington Luiz Pacheco de; OLIVEIRA, Mônica Santos. Raciocínio moral na tomada de decisões em relação a questões sociocientíficas: o exemplo do melhoramento genético humano. Ciência & Educação, v.16, n.2, p.465-477, 2010.