Pós-verdade na Ciência Moderna e Contemporânea: do surgimento do racismo científico aos dias de hoje

É importante e urgente que os conhecimentos produzidos por povos negros e originários sejam reconhecidos pela Ciência Moderna e Contemporânea e estejam presentes na educação básica, que foca principalmente no ensino de ciência eurocêntrico e colonial. (Fonte: montagem de autoria própria realizada a partir de imagens gratuitas do Canva).

Como podemos lutar contra a ciência eugenista? Uma análise sobre sua construção e as consequências na educação científica brasileira.

Lívia Dantas de Freitas

Sou licenciada em Física pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e durante a graduação eu participei como bolsista em programas de iniciação a docência (PIBID), extensão (PROEX) e pesquisa (PIBIC). Atualmente curso Mestrado com área de concentração em Ensino de Física no PIEC-USP, faço parte do Grupo de Pesquisa em Educação em Ciências e Complexidade (ECCo) e do corpo editorial da Balbúrdia. Sou apaixonada por gatos (tenho uma gata tricolor), Adele, séries de comédia, maquiagem e cultura drag. Instagram: @livia_dfreitas

05 de junho de 2023 | 10:00

Uma concepção comum construída sobre a ciência é que ela é livre de subjetividade e expressa a verdade através de seus constantes testes objetivos e racionais. Essa é, de forma simplista, o que caracteriza a Ciência Moderna e Contemporânea (CMC): saber pautado em experimentos, medições e visão objetiva dos fenômenos. Nessa perspectiva, seria então a Ciência Moderna e Contemporânea aquela que estabelece as verdades universais e inquestionáveis, certo?

Os autores Katemari Rosa, Alan Alves-Brito e Bárbara Pinheiro, professores titulares da Universidade Federal da Bahia (UFBA), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA), respectivamente, nos convidam a refletir sobre essa perspectiva da CMC e nos apresentam uma concepção diferente baseada na construção histórica desta ciência. O Ensaio Científico “Pós-verdade para quem? Fatos produzidos por uma ciência racista” foi publicado em 2020 no Caderno Brasileiro de Ensino de Física e denuncia a Ciência Moderna e Contemporânea racista que, através da pós-verdade, invalidou e invalida a ciência de povos não brancos. Para a discussão sobre o tema, os autores exploram diferentes perspectivas acerca da construção e persistência do racismo na sociedade e a contribuição da ciência branca e eurocêntrica refletida no Ensino de Ciências.

Pós-verdade sob diferentes perspectivas

Mas afinal, o que é pós-verdade? Você já ouviu essa palavra? Ela foi utilizada pela primeira vez em um artigo sobre a Guerra do Golfo escrito em 1992 por Steve Tesich, cineasta europeu, e foi definida como uma inclinação social em que a verdade teria menos importância do que aquilo que se acreditava que seria verdadeiro. Esse termo foi utilizado muitas vezes, até que, em 2016, foi eleito como a palavra do ano pelo dicionário Oxford, que a define como um conjunto de circunstâncias em que o apelo à crenças e emoções são mais influentes para a formação da opinião pública do que fatos objetivos. Desde então, as publicações acerca desse tema cresceram muito, principalmente atreladas ao avanço da internet e à fácil e rápida disseminação de Fake News. Mas como a CMC pode ser construída a partir da pós-verdade?

Para além da perspectiva de ciência objetiva e impessoal, devemos considerar que a ciência é uma construção social e histórica, que se localiza em tempo e espaço determinados, cuja verdade não é inquestionável. Ou seja, ela é feita por seres humanos e a Ciência Moderna e Contemporânea é feita majoritariamente por e para homens brancos. É esta ciência que perpetua o racismo através do apagamento e da marginalização dos conhecimentos de povos não-brancos, considerando-os arcaicos e inferiores.

Os autores apontam que “a construção moderna do racismo” foi iniciada junto ao colonialismo europeu. Os europeus instauraram o conceito de raça a partir do pensamento científico, classificando-os como “raça superior” e os povos não brancos como “raça inferior”, tendo seus conhecimentos e suas aparências reduzidos a traços mitológicos e animalescos. Então, os europeus objetificaram e escravizaram povos não brancos durante séculos com o respaldo da ciência. Foi nesse contexto que a ciência se pautou na pós-verdade, em que o conhecimento científico foi construído a partir da apropriação e banalização de conhecimentos não brancos. E como isso afeta a educação brasileira? Trabalhar o colonialismo europeu e uma ciência decolonial e antirracista deveria ser responsabilidade de diversas áreas, inclusive das ciências naturais, certo?

Colonialidade e educação científica brasileira

O Brasil é um país que ainda sofre consequências da colonização e do saqueio realizado com a cultura e o conhecimento de povos não-brancos. Uma dessas consequências é a colonialidade. Você conhece esse termo? Ele se refere a um fenômeno que caracteriza a perpetuação das estruturas coloniais mesmo após o país ter deixado de ser colônia. Esse fenômeno se baseia em três concepções: ser, saber e poder. A colonialidade do ser refere-se à negação da existência do outro e à destruição de identidades e imaginários diferentes do padrão europeu. A do saber refere-se à exaltação do conhecimento europeu em detrimento dos conhecimentos e interpretações de outras culturas. Por fim, a do poder refere-se ao domínio que a “raça superior” tem sobre as “raças inferiores”.

A educação científica no país é uma ferramenta importante para a manutenção desta colonialidade, mas como? Isso ocorre devido ao estabelecimento da ciência europeia como conhecimento legítimo nos espaços educacionais, sem levar em consideração as conquistas e contribuições do conhecimento científico de outros grupos étnicos-raciais. Alguns exemplos destacados pelos autores são:

  • A relação matemática conhecida como “Teorema de Pitágoras” foi utilizada por africanos, hindus, chineses e babilônios antes do nascimento de Pitágoras, mas normalmente é ensinado nas escolas que o criador do teorema foi Pitágoras, na Grécia.
  • Registros apontam que povos africanos navegaram pelo continente americano antes das navegações europeias, mas criou-se a ideia de que povos africanos não tinham conhecimento ou tecnologia para esse feito. Então, normalmente é ensinado nas escolas que os europeus foram os primeiros a cruzarem o Atlântico e “descobriram” as Américas, retratando esse acontecimento de forma heróica.

Esses são exemplos de construção da pós-verdade na ciência ao longo da história. Diante disso, podemos pensar: como romper essa corrente racista sobre a construção do conhecimento científico?

Educação anti-racista e decolonial

Nesse contexto, é perceptível que a educação brasileira contribui para o apagamento de conhecimentos de pessoas não brancas. Para lidar com essa ciência racista, os autores apontam a necessidade de primeiro compreender que o processo colonial é um sequestro e um silenciamento de povos de diferentes etnias e que é essencial o resgate dos conhecimentos e produções ancestrais desses povos. Além disso, os autores dão sugestões de como promover uma educação decolonial no ensino de física, algumas são: realizar debates sobre a história e a filosofia da ciência com pluralidade de visões sobre a construção e formas do conhecimento e realizar a inclusão de biografias de cientistas negros, a fim de gerar identificação de estudantes com essas personalidades. Torna-se, então, indispensável questionarmos como podemos nos organizar como agentes sociais e ampliar essa discussão, promovendo uma educação antirracista. Devemos ter em mente que essa responsabilidade é coletiva, sendo importante que os debates ocorram a nível nacional e estejam presentes em discussões sobre formulações de currículos educacionais, por exemplo.

 

Ficou interessado pelo tema? Então leia o artigo na íntegra em:

ROSA, Katemari; ALVES-BRITO, Alan; PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Pós-verdade para quem? Fatos produzidos por uma ciência racista. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, [s. l.], v. 37, ed. 3, p. 1440-1468, dez. 2020. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/74989>. Acesso em: 09 fev. 2023.