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A Situação de Direitos Humanos no Brasil, de acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos: diagnóstico e prognóstico de um país doente

Brasil: Altamira PA - Visita de la CIDH en el território indigena Paquisamba - Médio Xingu Fotos: Pedro Prado/FARPA/CIDH

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou, em fevereiro deste ano, seu Relatório sobre a Situação de Direitos Humanos no Brasil[1], fruto de sua visita realizada no país, em 2018, trazendo um panorama geral a respeito da situação do país em matéria de direitos humanos. O Relatório destinou-se a analisar seis grandes eixos:

i) a discriminação histórica e a discriminação socioeconômica como causas da desigualdade estrutural – analisando, neste contexto, a situação das pessoas afrodescendentes e também comunidades tribais ou tradicionais, como, por exemplo, os quilombolas, mulheres, povos indígenas, camponeses e trabalhadores rurais, pessoas sem-terra e sem-teto e pessoas que habitam em favelas e áreas periféricas, avaliando as consequências da discriminação socioeconômica em relação às vítimas de trabalho forçado ou em condição análoga à escravidão e do tráfico de pessoas;
ii) grupos em situação de risco – analisando a situação das pessoas nos sistemas prisionais, nos sistemas socioeducacionais e nas comunidades terapêuticas; a situação dos migrantes, dando especial destaque aos venezuelanos, debatendo a xenofobia e os desafios enfrentados por tais grupos e, por fim, a situação das pessoas LGBTI;
iii) segurança cidadã – destacando a violência seletiva baseada notadamente na desigualdade socioeconômica; violência contra ativistas e defensores de direitos humanos, no contexto da falta de segurança e a resposta do Brasil a respeito dos avanços, retrocessos, violência praticada por agentes do Estado, racismo institucional, militarização da segurança pública e controle de armas;
iv) institucionalidade e direitos humanos – avaliando as instituições democráticas brasileiras;
v) Impunidade – analisando esta e a denegação de justiça, além das graves violações de direitos cometidas durante a ditadura militar e, por fim,
vi) liberdade de expressão e informação – destacando os discursos de incitação ao ódio e discriminação, censura e declarações estigmatizantes, no contexto do direito de associação e protestos sociais, bem como a violência contra jornalistas e comunicadores.

Com base neste relatório, podemos destacar que, apesar de alguns avanços importantes conquistados, o Brasil está muito, muito doente: a discriminação e a desigualdade estruturais contaminam os sistemas prisionais e socioeducacionais e só perpetuam a “marginalização de pessoas afrodescendentes e das que vivem em situação de extrema pobreza” e sujeitam os indivíduos a todo tipo de tortura e maus tratos, bem como dificultam a reinserção social de crianças e adolescentes, conforme a CIDH[2].

O padrão de discriminação estrutural e racismo institucional, segundo a CIDH, impede que as pessoas exerçam seus direitos, participem dos espaços democráticos, alcancem o trabalho formal e cargos de gestão e prejudica o acesso à saúde, à educação, à moradia e à justiça[3].

Além disso, a discriminação notadamente fundada na origem étnico-racial, gera um “ciclo de pobreza” que torna as pessoas muito mais vulneráveis à violência realizada por grupos e organizações criminosas, como o tráfico de drogas, de pessoas e a exploração do indivíduo em condições de trabalho análogo à escravidão, como bem reforça a CIDH.

A discriminação estrutural alimentada pelo machismo, o patriarcalismo e pela prevalência de estereótipos sexistas “permitem e toleram a violência em todas as suas dimensões”[4] contra as mulheres. Somado aos “fatores interseccionais”, como, por exemplo, a discriminação racial estrutural, eleva-se a violência contra as “mulheres afrodescententes”[5], conforme afirma a CIDH.

Ademais, para a CIDH, a discriminação estrutural econômica atinge outros grupos, tais como, as pessoas em situação de rua, a população sem teto que vive em favelas e áreas periféricas, bem como os migrantes. Esses indivíduos não usufruem de seus direitos básicos e se inserem em um grupo de extrema vulnerabilidade[6], especialmente, para o “aliciamento para fins de tráfico de pessoas e para o trabalho escravo ou análogo à escravidão”[7].

O mesmo mal da discriminação deixa sequelas também na segurança dos indivíduos dado o número expressivo de mortes violentas no país, inclusive de ativistas e defensores de direitos humanos, grupos vulneráveis e mulheres[8]. A CIDH destaca que as políticas públicas eleitas para o combate da violência estão fundadas em ações de “caráter violento e punitivo por parte da polícia e dos órgãos judiciais” e da militarização da segurança pública e da sua privatização, com a flexibilização do controle de armas[9]. A violência seletiva, tal como denomina a CIDH, atinge “desproporcionalmente segmentos sociais que sofrem da discriminação estrutural” e que já “estão expostos à violência estrutural interseccional” e com “características étnico-raciais e socioeconômicas”[10].

A impunidade seletiva também é um agravante neste cenário, para a CIDH: a demora (ou a falta!) das investigações, condenações e reparações às vítimas de violência institucional, “consolida um diagnóstico de racismo institucional presente no sistema de justiça”[11] brasileiro, perpetuando a violência no país.

Num país doente, a medicação da informação e expressão também não tem sido ministrada corretamente: a CIDH destaca o aumento de ameaças contra jornalistas e comunicadores[12], as restrições de direitos no contexto de protestos e manifestações sociais[13] e a proliferação dos discursos de ódio e estigmatizantes baseados na orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero das pessoas, praticadas especialmente por agentes do Estado[14]. Ademais, a CIDH manifestou sua preocupação com o exercício da liberdade expressão de professores e educadores no âmbito escolar, especialmente, com relação ao “Programa Escola Sem Partido”[15].

A CIDH ressalta a solidez de instituições democráticas no Brasil e a adoção de uma série de medidas para prevenção de violações e a proteção de direitos adotadas no país que servem como remédios importantes para tratar os sintomas da doença, mas a doença continua avançando: retrocessos em matéria de direitos humanos, aumento expressivo da violência, falta de políticas públicas direcionadas, desigualdades sociais, discriminação estrutural, dentre outras, como assinalou a própria CIDH, vão afetando o sistema imunológico do país, enfraquecendo as vozes de seus cidadãos e asfixiando a democracia.

Mas a doença tem cura? A CIDH trouxe recomendações importantes, indicando novos caminhos – e reforçando os já conhecidos. No entanto, os sintomas e as causas dos males de que o país sofre são tantos que é muito difícil afirmar que o prognóstico seja favorável ao país, no curto ou no longo prazo. É necessário um olhar atento, um acompanhamento rigoroso e um debate contínuo para buscar alternativas viáveis e efetivas para tratar do nosso país.

 


 

[1] CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21 de 12 fev. 2021.

[2] CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21 de 12 fev. 2021,§3; §§150-194; §§ 202-223.

[3] Ibidem, §§ 20-21.

[4] Ibidem, §87.

[5] Ibidem, §92.

[6] CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21 de 12 fev. 2021, §§111-123.

[7] Ibidem, §124.

[8] Ibidem, §§ 271, 295-297.

[9] Ibidem, §§272-273

[10] Ibidem, §276.

[11] Ibidem, §7.

[12] Ibidem, §§ 503- 509.

[13] Ibidem, §§ 481-483.

[14] Ibidem, §§492-496 e §§ 498-500.

[15] CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21 de 12 fev. 2021, §§ 478-479.