Dr. Albieri e as visões científicas na novela O Clone: debates para a comunicação pública da ciência

 

Embora incluindo estereótipos científicos e erros conceituais, a telenovela se aventurou no campo da ficção científica e teve papel marcante no debate público sobre clonagem e os princípios morais e éticos dentro da ciência.

 

11 de abril de 2022 | 18:30

Anderson Ricardo Carlos

Biólogo e professor de Biologia pela Unesp Botucatu, com período sanduíche na Radboud University (Holanda). Mestre em Ensino e História das Ciências (UFABC). Doutorando pelo PIEC-USP, com bolsa FAPESP (Processo no. 2020/10406-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), na área de História das Ciências no Brasil e interfaces com a formação de professores.

Amante de cinema, política, história, cultura drag e passeios ao ar livre em meio à natureza.

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As obras de ficção científica sempre têm um lugar especial para os admiradores da ciência. Do debate na literatura ao audiovisual, esse gênero é arquitetado através de um conjunto de concepções sobre a ciência de seu momento histórico e, ao mesmo tempo, expressam essas e outras ideias científicas para as plateias. Imortais para o público estão o romance Frankenstein (1818), de Mary Shelley, ou o filme Alien (1979), de Ridley Scott. Mas onde ficam as obras nacionais de ficção científica?

Um amplo acervo de produções brasileiras que marcaram época poderiam ser citadas, desde seus primeiros registros há quase um século e meio[1]. Porém, dificilmente alguma foi alvo de tanto debate público sobre a ciência e obteve sucesso em todas as regiões do país. A famosa clonagem da ovelha Dolly em 1996 gerou um bombardeio de notícias pela mídia, prevendo ideias promissoras para a biotecnologia que se estenderam para o início da década de 2000. Nesse contexto, a autora Glória Perez escreveu a telenovela O Clone (2001-2002)[2]. A partir de sua excentricidade ao combinar um roteiro envolvendo a clonagem humana e a cultura muçulmana, a novela representou um momento de intensa discussão científica num produto da cultura de massa.

Pesquisadores, como a geneticista Mayana Zatz (IB-USP), chegaram a prestar consultoria para a novela. Contudo, segundo a cientista em entrevista concedida a um site[3], o aconselhamento tratou apenas de aspectos éticos, não de conceitos genéticos. Zatz criticou a novela por não promover uma divulgação científica eficaz para o público, apontando usos incorretos de conceitos na novela. De fato, a novela cometeu erros crassos no conteúdo científico[4]. Contudo, deve-se analisar qual seria o ideal de “divulgação científica eficaz” proposto.

Um dos modelos de comunicação científica, explicitado por autores especialistas na área, é chamado de “modelo de déficit”. De forma simplista, ele vê a população como um conjunto de analfabetos em ciência que devem receber o conteúdo redentor científico[5]. Portanto, sob a ótica desse modelo, a telenovela não cumpriria sua função. Como obra de ficção, ela não tem o ideal educativo, já que objetiva o entretenimento. Por outro lado, a maioria dos pesquisadores de divulgação científica hoje consideram outras perspectivas, nas quais é importante se tratar de aspectos culturais e as interfaces entre ciência e cultura para a comunicação científica. Nesses termos, para ser eficaz, ela também deve ser acessível a camadas populares, excluídas de grande parte do debate público sobre a ciência[5]

Muito do que é trazido na novela não deve ser visto como instrumento educacional direto, mas pode ser alvo de debates relevantes. Um ponto refere-se aos estereótipos científicos, que refletem a visão da ciência de uma época. Doutor Albieri (Juca de Oliveira), o geneticista autor da clonagem na trama, é retratado como um fanático, ateu e fielmente dedicado à genética, um gênio avesso às relações afetivas. Seu grande feito da novela, a clonagem de um afilhado (Murilo Benício), é realizado de forma isolada num laboratório. Ao se fazer o clone, em um dos episódios, Albieri se abstém da responsabilidade dos usos dos seus feitos científicos, que, segundo ele, são estabelecidos pela sociedade e não pelo cientista. Isso expressa uma série de concepções bem discutidas no meio acadêmico sobre a interpretação positivista da ciência[6]. Há uma visão rejeitada pelos estudos da ciência, que é ainda presente também no jornalismo científico. Nelas, se mitifica a atividade científica, focando em aspectos espetaculares ou na genialidade dos cientistas, cuja atuação seria individualizada[5]

Apesar das simplificações, estereótipos e equívocos, alguns autores acadêmicos que se debruçaram sobre o estudo da telenovela apontam que a obra conseguiu promover amplamente o debate público sobre a clonagem e seus princípios morais e éticos. Em abril de 2002, a real notícia que um médico italiano, Severino Antinori, teria feito o primeiro clone humano do mundo foi divulgado na telenovela. Incorporada à trama, criou-se uma rivalidade entre o cientista real e o Dr. Albieri, sendo que este último teria feito o clone antes de Antinori. Assim, ficção científica e comunicação científica se misturavam na trama[7].

Algumas discussões interessantes de problematização a partir da novela envolvem a ética evolutiva. A clonagem é vista por Albieri como um ideal promissor de melhoramento da espécie humana e controle da humanidade sobre o processo evolutivo. Tal discussão remete às articulações históricas dos movimentos eugênicos, cujas ideias tiveram fins trágicos[8]. Outras reflexões pertinentes são sobre o conflito entre a ciência e a religião, que faz o geneticista mencionar alguns episódios da História das Ciências[9]. Diversas conversas filosóficas são feitas entre o cientista ateu com religiosos, como um padre católico e um muçulmano. Em um diálogo, Albieri opina que atribuímos a explicações religiosas fatos que a ciência não esclareceu devidamente e, conforme esclarecidos pela última, o científico ocuparia o lugar do sobrenatural. 

Com objetivo educacional, a novela tem o potencial de promover uma série de debates científicos, dificilmente vistos em obras de grande audiência no Brasil. É possível que tais reflexões sejam úteis em sala de aula, se problematizadas de forma a se apoiar na literatura em educação científica[7]. Como objeto de estudo, a trama pode servir como registro histórico de ficção científica e de comunicação científica. Mais pesquisas na área de Ensino podem promover uma análise crítica dos impactos da obra para o entendimento público da ciência. Nesse sentido, a ficção científica pode ser um disparador de interesse para o debate público da ciência, nos mais variados temas e atingindo todas as classes sociais. Inshallah! 


[1] Dentro da história da divulgação científica, um dos primeiros registros históricos de uma obra de ficção científica no Brasil é a obra Doutor Benignus, de Emílio Zaluar, de 1875, inspirada na obra Viagem ao centro da Terra, de Júlio Verne.

[2] A novela foi exibida pela Rede Globo de Televisão originalmente entre 2001-2002, durante o horário nobre. Recentemente, entre 2021-2022, ela está sendo reprisada durante as tardes na TV aberta.

[3] COM CIÊNCIA: Revista Eletrônica de Jornalismo científico. Clonagem humana: alcances e limites. Campinas (UNICAMP): Sociedade Brasileira de Progresso para a Ciência, 2001. Disponível em: https://www.comciencia.br/dossies-1-72/entrevistas/clonagem/zatz.htm Acesso em 31 jan. 2022

[4]  No penúltimo capítulo, um exemplo de equívoco conceitual é a cena em que uma advogada (Joana Fomm) tenta evidenciar algum laço de maternidade de Deusa (Adriana Lessa), a barriga de aluguel que gerou o clone humano. Na justificativa para demonstrar o laço, ela menciona a mitocôndria, mas a cita como um tipo de célula e não, devidamente, como uma organela citoplasmática.

[5] MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa. Aspectos históricos da divulgação científica no Brasil. In: MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa; BRITO, Fátima (Org.). Ciência e Público: caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, p. 43-64.

[6] Para saber mais, leia: GIL-PÉREZ, Daniel; FERNÁNDEZ MONTORO, Isabel; CARRASCOSA ALIS, Jaime; CACHAPUZ, Antônio; PRAIA, Jão. Por uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, v. 7, n. 2, 2001, p. 125-153.

[7] Para ler um trabalho na área que discute a novela, leia: SANTOS, Robson de Souza. Discurso científico e telenovela: uma análise de O Clone. Ciência & Comunicação, v. 3, p. 1-15, 2006.

[8] Para saber mais sobre o que foi a eugenia, inclusive a ocorrida aqui no Brasil, sugiro a primeira temporada do podcast “Pelo Avesso”, produzido por Xirê podcast e disponível no Spotify: https://open.spotify.com/show/0E5lIcS0UHUK0NSB2dsh8t

[9] Em um episódio da telenovela, Albieri se compara ao filósofo Giordano Bruno (1548-1600) que, pela ousadia de suas ideias, foi punido e levado à fogueira pela Santa Inquisição na Idade Média.