30 anos do Tribunal Penal Internacional para Ruanda: reflexões sobre o seu legado

Foto: Blink O'fanaye (Flickr)

Neste ano de 2024, mais precisamente no dia 8 de novembro, completaram-se 30 anos da fundação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Criado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) para o julgamento de indivíduos acusados de genocídio e violações de outras normas internacionais, o Tribunal teve sua sede em Arusha (Tanzânia) e foi pioneiro em diversas questões de direito internacional penal.

O conflito entre duas etnias, Hutus e Tutsis, gerou uma onda de violência e deslocamento interno, exacerbando as tensões étnicas. Quando o avião que transportava o presidente Juvénal Habyarimana foi derrubado em Kigali, em 6 de abril de 1994, massacres sistemáticos contra tutsis e hutus moderados foram desencadeados. Argumenta-se que o assassinato serviu como um pretexto para a execução de um plano genocida já em andamento. As consequências foram estarrecedoras: os cálculos oficiais apontam que, em pouco mais de cem dias, mais de 800 mil pessoas foram assassinadas.[1]

O Conselho de Segurança da ONU, por meio da Resolução 955, adotada em 8 de novembro de 1994, criou formalmente o Tribunal Penal Internacional para Ruanda. O Tribunal foi estabelecido como um órgão ad hoc, nos moldes do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, que havia sido criado um ano antes para investigar os crimes internacionais cometidos durante as Guerras Iugoslavas e julgar os responsáveis.

A Resolução 955 especificava que o Tribunal teria jurisdição sobre genocídio (artigo 2), crimes contra a humanidade (artigo 3) e violações do Artigo 3 comum às Convenções de Genebra e do Protocolo Adicional II (artigo 4, violações do direito internacional humanitário).

Durante seu funcionamento entre 1994 e 2015, 93 pessoas foram indiciadas, sendo 61 condenadas,[2] entre elas os três principais dirigentes do governo ruandês (Theoneste Bagosora, Aloys Ntabakuze e Anatole Nsengiyumva). Esta também foi a primeira vez em que o crime de estupro e o uso indevido da mídia foram reconhecidos como perpetração do genocídio perante a legislação penal internacional.

Alguns casos julgados pelo Tribunal tiveram importante papel no avanço da jurisprudência internacional, criando precedentes fundamentais para o julgamento do genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Um caso central para o legado do Tribunal Penal Internacional para Ruanda é o caso contra Jean-Paul Akayesu, condenado por genocídio e crimes contra a humanidade, incluindo violência sexual. Este caso foi pioneiro ao reconhecer o estupro como uma forma de genocídio e um crime contra a humanidade. Akayesu, ex-prefeito de Taba, foi condenado por incitar e participar diretamente no genocídio e nos crimes sexuais cometidos contra mulheres tutsis.[3]

Também marcou o legado do Tribunal, o caso Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza e Hassan Ngeze (“Mídia Mil”), indiciados por Incitação direta e pública ao genocídio. Este caso mostrou o papel central da mídia na incitação ao genocídio, ao responsabilizar os réus pelas mensagens de ódio e incitação à violência disseminadas pela Rádio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM) e pelo jornal Kangura.[4]

Outros três casos que tornam o Tribunal Penal Internacional para Ruanda uma peça central no avanço do direito internacional penal são: o Caso Bagosora, considerado o “arquiteto do genocídio”, foi condenado por planejar os massacres, incluindo o assassinato de líderes políticos moderados e capacetes azuis da ONU; o Caso Nyiramasuhuko, ex-ministra da Família e Promoção da Mulher, foi a primeira mulher condenada por genocídio em um tribunal internacional. Ela foi responsabilizada por ordenar estupros em Butare, reforçando o papel das lideranças políticas femininas no genocídio; e o Caso Rutaganda, que, como vice-presidente da milícia Interahamwe, desempenhou um papel central nos ataques sistemáticos contra tutsis. Sua condenação reforçou o entendimento da responsabilidade penal individual de líderes paramilitares.[5]

O Tribunal Penal Internacional para Ruanda deixou um legado significativo no desenvolvimento do direito internacional penal, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento do estupro como genocídio e crime contra a humanidade, a responsabilização pela incitação à violência e o estabelecimento de precedentes sobre a responsabilidade de líderes políticos e militares.

Anos após a prolação das sentenças, mudanças na interpretação legal apresentadas pela defesa de condenados proeminentes (em especial políticos e membros do alto comando do exército), obtiveram sucesso em reduzir suas penas, incitando o questionamento sobre a capacidade de responsabilização daqueles que ordenam crimes de guerra, a chamada “responsabilidade de comando”.

Em 2010, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, por meio da Resolução 1966, decidiu estabelecer o Mecanismo Residual Internacional para Tribunais Criminais, que assumiria as atividades dos Tribunais Penais Internacionais para Ruanda e para a antiga-Iugoslávia, uma vez encerradas suas atividades. O Mecanismo começou a funcionar a partir de 1º de julho de 2012 e 1º de julho de 2013, respectivamente. O Mecanismo, além de transferir alguns casos para o sistema de justiça ruandês, continuou o trabalho de revisão e julgamento das apelações de indivíduos condenados pelo Tribunal.

Em maio de 2020, após 26 anos foragido, Félicien Kabuga foi capturado e entregue ao Mecanismo para julgamento. Kabuga havia sido formalmente acusado pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda em 1997 por genocídio, conspiração para cometer genocídio, incitação direta e pública ao genocídio e crimes contra a humanidade. Devido à sua idade avançada e condições de saúde, porém, em 6 de junho de 2023, os juízes do Tribunal decidiram, por maioria, que a saúde mental de Kabuga o tornava inapto para participar de seu julgamento. Ficou decidido, por maioria de votos, continuar o caso por meio de um “procedimento de descoberta alternativo que se assemelha a um julgamento o mais próximo possível, mas sem a possibilidade de uma condenação”. Isso foi inédito na justiça internacional e altamente controverso.[6]

Apesar de situações de impunidade criarem uma impressão de ineficácia, a experiência do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, tal qual como do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, teve um papel fundamental nos trabalhos de codificação e desenvolvimento do direito internacional penal. Ambas as experiências foram muito importantes para a criação de uma jurisdição penal internacional de caráter permanente, na forma do Tribunal Penal Internacional (TPI) fundado pelo Estatuto de Roma (1998), do qual Ruanda nunca fez parte.

 

[1] MENDONÇA, Marina Gusmão de. O genocídio em Ruanda e a inércia da comunidade internacional. Brazilian Journal of International Relations, v. 2, n. 2, p. 300-328, 2013.

[2] CRAVO, M. A. P. Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Jusbrasil, 2019.

[3] ASKIN, K. D. Sexual Violence in Decisions and Indictments of the Yugoslav and Rwandan Tribunals: Current Status. The American Journal of International Law, v. 93, n. 1, p. 97-123, 1999.

[4] THOMPSON, A.; PRICE, M. E. Forging Peace: Intervention, Human Rights and the Management of Media Space. Bloomington: Indiana University Press, 2003.

[5] SCHABAS, W. A. The UN International Criminal Tribunals: The Former Yugoslavia, Rwanda and Sierra Leone. Cambridge: Cambridge University Press, 2006; HALLEY, J. Rape at Rome: Feminist Interventions in the Criminalization of Sex-Related Violence in Positive International Criminal Law. Michigan Journal of International Law, v. 30, n. 1, p. 1-123, 2008; AKANDE, D. The Jurisdiction of the International Criminal Court over Nationals of Non-Parties: Legal Basis and Limits. Journal of International Criminal Justice, v. 1, n. 3, p. 618-650, 2003.

[6] https://www.justiceinfo.net/en/120523-final-curtain-falls-on-kabuga-trial.html