Opinião Consultiva sobre as obrigações dos Estados em relação às Mudanças Climáticas: Aspectos Procedimentais para o Exercício da Competência Consultiva pela Corte Internacional de Justiça

Em 29 de março de 2023, na 64ª Reunião Plenária da Assembleia Geral das Nações Unidas – órgão que espelha a igualdade jurídica entre os Estados-, foi adotada a Resolução nº 77/276, nos termos do artigo 95 da Carta de São Francisco, com a finalidade de solicitar à Corte Internacional de Justiça, uma opinião consultiva sobre as obrigações dos Estados no que concerne às Mudanças Climáticas, tema contemporâneo de grande importância para o Direito Internacional, que preocupa e impacta a sociedade internacional.
Diante da complexidade e da relevância dessa solicitação antes, porém, de ser abordada as principais especificidades procedimentais da vertente opinião consultiva e o compasso processual já alcançado até o presente momento, necessário se faz explicitar, ainda que brevemente, alguns aspectos da jurisdição e da competência da Corte Internacional de Justiça.
A jurisdição e a competência da Corte Internacional de Justiça: Breves lineamentos
Primeiramente, é de todo oportuno destacar que, a Corte Internacional de Justiça é o principal órgão judicial das Nações Unidas. Os Estados são os legitimados, por excelência, para buscarem a tutela jurisdicional da Corte. A jurisdição internacional material da Corte é geral, por essa razão, pode pronunciar-se sobre questões jurídicas atinentes a qualquer ponto de direito internacional; interpretar tratados; declarar a existência de um ato ilícito internacional; reconhecer o direito de um Estado em face de uma violação normativa internacional e determinar o quantum de uma indenização decorrente de um ilícito internacional.
Ademais, para exercer o seu poder de dizer o direito na esfera internacional, a Corte detém duas competências principais: a contenciosa e a consultiva. De um lado, o exercício da competência contenciosa pela Corte Internacional de Justiça está é adstrita à existência efetiva de uma controvérsia internacional – pretensão resistida entre os Estados! – e deve ser precedida pela (i) manifestação inequívoca da aceitação da jurisdição obrigatória da Corte pelos Estados envolvidos – conhecida como Cláusula Facultativa de Jurisdição Obrigatória ou Cláusula Raul Fernandes, em homenagem ao diplomata idealizador brasileiro – (ii) conjugada com a declaração de que a decisão internacional a ser proferida pela Corte será cumprida de boa-fé pelos Estados envolvidos.
Desse modo, a competência contenciosa é, em última ratio, aquela que se assenta sobre uma controvérsia internacional entre Estados e poderá resultar numa sentença internacional definitiva, dotada de obrigatoriedade, com efeitos inter partes, cujo eventual descumprimento poderá ensejar a intervenção e o enforcement do Conselho de Segurança das Nações Unidas, denotando, assim, o caráter sistêmico do Direito Internacional.
Por outro lado, o exercício da competência consultiva, exsurge de uma solicitação, lastreada, regra geral, numa Resolução adotada pela Assembleia Geral ou pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas à Corte Internacional de Justiça para que este órgão jurisdicional internacional responda indagações acerca de questões jurídicas internacionais, que são relevantes para toda a sociedade internacional ou constituem um determinado ponto nevrálgico que demanda maior depuração jurídica, seja sobre um Estado ou Estados, mas que interessa e preocupa ou impacta, em maior ou menor escala, toda a sociedade internacional.
Aspectos procedimentais gerais para o exercício da competência consultiva:
Por tratar-se de uma opinião consultiva, a Corte Internacional de Justiça promoverá, destarte, a comunicação a todos os Estados membros das Nações Unidas, fixando-lhes prazo, para se desejarem, manifestarem-se acerca das indagações formuladas, apresentando uma declaração escrita – written statement.
A seguir, são designadas audiências públicas, possibilitando, uma vez mais a participação efetiva dos Estados, que poderão expressar e compartilhar suas perspectivas que, contribuirão para a construção da livre convicção dos Juízes Internacionais, que compõem a Corte Internacional de Justiça.
Não obstante, é possível, ante a complexidade e a relevância da questão formulada, que ensejou a solicitação da Opinião Consultiva, que os próprios Juízes Internacionais da Corte Internacional de Justiça formulem questões adicionais aos Estados e a eventuais Organizações Internacionais ou participantes autorizados, com o fito de aclarar determinados pontos, destarte, concedendo nova oportunidade para que os Estados possam se manifestar por escrito, inclusive.
Ao finalizar as audiências públicas, inicia-se a última fase: a deliberação pelos juízes. Após perpassar minunciosamente cada aspecto jurídico da questão, a opinião consultiva é emitida pela Corte Internacional de Justiça, consagrada por quórum unânime ou maioria. Merece ser destacado que, a atuação judicante dos juízes internacionais da Corte internacional de Justiça é assentada, principalmente, sobre os princípios da imparcialidade, independência e neutralidade. Todavia, os juízes ao formarem livremente sua convicção jurídica sobre determinada questão – caso esta estiver em dissonância ao entendimento colegiado majoritário -, poderão emitir opiniões dissidentes ou individuais.
Em breve síntese, a opinião dissidente é aquela emitida por um juiz da Corte com a finalidade de expor as razões jurídicas pelas quais diverge do voto colegiado majoritário, constante na parte dispositiva de uma determinada opinião consultiva. Por sua vez, a opinião individual é aquela esposada por um juiz da Corte que adere ao voto colegiado majoritário, expresso na parte dispositiva de uma determinada opinião consultiva, no entanto, o fundamento que embasa sua convicção é distinto. Tanto a opinião dissidente quanto a opinião individual são publicadas no recueil des décisions e também encontram-se acostadas logo após a decisão colegiada majoritária da Corte.
Por tratar-se de uma opinio iuris, seus efeitos prima facie são meramente elucidativos acerca de determinada questão ou questões controvertidas de Direito Internacional e indicativos ou recomendatórios de condutas a serem seguidas pelos Estados, sem, contudo, ser dotada de obrigatoriedade, atributo necessário e inerente que possibilita a eficácia e a efetividade de execução de uma sentença internacional transitada em julgado.
De modo distinto, uma opinião consultiva especialmente por constituir uma opinio iuris detém a latência intrínseca de assentar bases relevantes, que poderão contribuir para a formação e o desenvolvimento do próprio Direito Internacional – seja pelo costume seja pelo tratado ou outra fonte – assim como poderá influenciar a criação, a modificação ou a extinção de normas do ordenamento jurídico interno dos Estados.
Aspectos procedimentais específicos e a fase processual atual da Opinião Consultiva sobre as obrigações dos Estados em relação às mudanças climáticas:
Nos termos do artigo 65 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, a Assembleia Geral da Nações Unidas adotou a Resolução nº 77/226, em 29 de março de 2023 e solicitou a opinião consultiva sobre as obrigações do Estados no que se refere às mudanças climáticas, com a finalidade de que a Corte exerça sua competência consultiva assentada, in casu, em duas questões[1] basilares originárias, delineadas a seguir:
(1) Quais são as obrigações dos Estados de acordo com o Direito Internacional para assegurar a proteção do sistema climático e de outras partes do meio ambiente da emissão antropogênica de gases de efeito estufa – greenhouse gases – para os Estados e para a presente e para as futuras gerações? e
(2) Quais são as consequências legais dessas obrigações para os Estados, na qual eles, em razão de seus atos e emissões, tiverem causados significativos danos ao sistema climático e às outras partes do meio ambiente, com respeito aos: (i) Estados, incluindo, em particular, pequenos Estados insulares em desenvolvimento, que devido à suas circunstâncias geográficas e nível de desenvolvimento, estão sendo prejudicados ou especialmente afetados ou particularmente vulneráveis aos efeitos adversos da mudança climática? (ii) Povos ou Indivíduos da presente e das futuras gerações afetadas pelos efeitos adversos da mudança climática?
A Corte Internacional de Justiça recebeu a solicitação dessa opinião consultiva em 12 de abril de 2023. Não apenas a Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas instrui a solicitação, essa opinião foi lastreada por vários documentos internacionais normativos, especialmente, por tratados multilaterais sobre mudança climática; diversidade biológica; direito do mar; direitos humanos; desertificação e proteção da camada de ozônio – para citar apenas alguns!-; atinentes ao desenvolvimento do Direito Internacional, tais como: a responsabilidade dos Estados por atos ilícitos; a proteção do meio ambiente em caso de conflitos armados; a proteção da atmosfera, assim como por relatórios científicos o que denota a magnitude que enfeixará o exercício dessa competência consultiva pela Corte Internacional de Justiça diante das diversas matizes que a serem consideradas.
Inaugurando os trâmites para exercer sua competência consultiva, a Corte fixou prazos, com a finalidade de que as Nações Unidas, assim como seus Estados-membros, pudessem se manifestar por meio de declarações escritas, acerca do dossiê de informações e documentos internacionais já apresentados pelas Nações Unidas.
Ante a complexidade das questões e visando oportunizar a participação de mais Estados e/ou organizações e instituições que detêm nítido interesse e podem ser afetadas, a Corte Internacional de Justiça estendeu os prazos e autorizou a participação no presente procedimento consultivo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo; da Aliança dos Pequenos Estados Insulares; do Fórum das Ilhas do Pacífico; da Organização Mundial da Saúde; assim como da Organization of African Caribbean and Pacific States (OACPS); the Melanesian Spearhead Group (MSG) and the Forum Fisheries Agency; International Union for Conservation of Nature (IUCN); Parties to the Nauru Agreement Office (PNAO); Comission of Small States Island States (COSIS); Pacific Island Forum Secretariat, que contribuíram apresentando suas observações à Corte.
Por conseguinte, entre os dias 02 a 13 de dezembro de 2024, ocorrerem as audiências públicas, momento em que 96 (noventa e seis) Estados e 11 (onze) organizações internacionais puderam expressar-se oralmente perante a Corte.
Em virtude dos aportes e das considerações apresentadas pelos participantes à Corte nessa etapa, os juízes internacionais Cleveland[2], Tladi[3], Aurescu[4]e Charlesworth[5], formularam questionamentos adicionais às duas indagações principais norteadoras – insertas na Resolução da Assembleia Geral – com a finalidade de depurar determinados aspectos específicos relevantes, como se pode observar:
3.1 Durante esses procedimentos, vários participantes se referiram à produção de combustíveis fósseis no contexto das mudanças climáticas, inclusive com relação a subsídios. Na sua opinião, quais são as obrigações específicas de acordo com o direito internacional dos Estados, em cuja jurisdição os combustíveis fósseis são produzidos para garantir a proteção do sistema climático e de outras partes do meio ambiente contra emissões antropogênicas de gases de efeito estufa, se houver?
3.2 Em suas alegações escritas e orais, os participantes geralmente se envolveram em uma interpretação dos vários parágrafos do Artigo 4 do Acordo de Paris. Muitos participantes, com base nessa interpretação, chegaram à conclusão de que, na medida em que o Artigo 4 impõe quaisquer obrigações em relação às Contribuições Nacionalmente Determinadas, essas são obrigações processuais. Os participantes que chegaram a essa conclusão, em geral, confiaram no significado comum das palavras, contexto e, às vezes, alguns elementos do Artigo 31 (3) da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Gostaria de saber dos participantes se, de acordo com eles, “o objeto e o propósito” do Acordo de Paris, e o objeto e propósito da estrutura do tratado sobre mudanças climáticas em geral, têm algum efeito sobre essa interpretação e, em caso afirmativo, qual efeito isso tem?
3.3 Alguns participantes argumentaram, durante as fases escritas e/ou orais dos procedimentos, que existe o direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável no direito internacional. Poderia, por favor, desenvolver qual é, na sua opinião, o conteúdo legal desse direito e sua relação com os outros direitos humanos que você considera relevantes para este parecer consultivo?
3.4 No seu entendimento, qual é o significado das declarações feitas por alguns Estados ao se tornarem partes da UNFCCC e do Acordo de Paris, no sentido de que nenhuma disposição nesses acordos pode ser interpretada como derrogatória de princípios do direito internacional geral ou de quaisquer reivindicações ou direitos relativos a compensação ou responsabilidade devido aos efeitos adversos das mudanças climáticas?
Para responder a estes questionamentos adicionais, a Corte Internacional de Justiça possibilitou a todos os participantes autorizados a oportunidade de apresentar suas respostas às indagações por escrito. Muitos participantes o fizeram, concluindo-se, assim, essa etapa procedimental consultiva aos participantes autorizados. Até aqui, a Corte exerceu sua função precípua de administrar a justiça, zelando pela regularidade escorreita e pela instrução processual, de acordo com o princípio do devido processo legal, para alçar a fase final do procedimento, que é a deliberatória.
É justamente nessa etapa procedimental de deliberação que se encontra a presente Opinião Consultiva. Os juízes internacionais da Corte Internacional de Justiça irão exercer sua função precípua de dizer o direito: apreciarão e elucidarão as questões originárias de Resolução nº 77/276, que constituem o cerne e delimitam juridicamente a Opinião Consultiva; indicarão ou recomendarão condutas aos Estados. Após analisar, sopesar e interpretar: (i) todos os documentos internacionais que fazem parte integrante da Resolução; (ii) todos os relatórios científicos ;(ii) todas as declarações escritas assim como todas as declarações apresentadas oralmente durante as audiências públicas, os juízes da Corte formarão sua livre convicção acerca da opinio iuris, que constituirá a razão de decidir de sobre as obrigações dos Estados em relação às mudanças climáticas.
É com grande expectativa que a sociedade internacional aguarda o pronunciamento dessa monumental opinio iuris da Corte Internacional de Justiça, eis que poderá ser consagrada como um leading case, especialmente, em matéria de expansão e evolução das obrigações e da consequente responsabilização dos Estados atinentes às mudanças climáticas. Que seja auspiosa mais esta contribuição preciosa da Corte que impactará sobremaneira não apenas a sociedade internacional, mas a toda humanidade presente e futura!
[1] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Request for Advisory Opinion. Transmitted to Court pursuant to General Assembly resolution 77/276 of 29 March 2023. Obligations of States in Respect of Climate Change, p. 02. Disponível em: <https://www.icj-cij.org>. (a) What are the obligations of States under international law to ensure the protection of the climate system and other parts of the environment from anthropogenic emissions of greenhouse gases for States and for present and future generations? (b) What are the legal consequences under these obligations for States where they, by their acts and omissions, have caused significant harm to the climate system and other parts of the environment, with respect to: (i) States, including, in particular, small island developing States, which due to their geographical circumstances and level of development, are injured or specially affected by or are particularly vulnerable to the adverse effects of climate change? (ii) Peoples and individuals of the present and future generations affected by the adverse effects of climate change?”
[2] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Request for Advisory Opinion. Obligations of States in Respect of Climate Change. Public Sitting. Verbatin Record 2024/54. 13 Dec 2024, p. 39. Disponível em: <https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/187/187-20241213-ora-02-00-bi.pdf>. During these proceedings, a number of participants have referred to the pr024. oduction of fossil fuels in the context of climate change, including with respect to subsidies. In your view, what are the specific obligations under international law of States within whose jurisdiction fossil fuels are produced to ensure protection of the climate system and other parts of the environment from anthropogenic emissions of greenhouse gases, if any?
[3] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Request for Advisory Opinion. Obligations of States in Respect of Climate Change. Public Sitting. Verbatin Record 2024/54. 13 Dec 2024, p. 40. Disponível em: <https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/187/187-20241213-ora-02-00-bi.pdf>. In their written and oral pleadings, participants have generally engaged in an interpretation of the various paragraphs of Article 4 of the Paris Agreement. Many participants have, on the basis of this interpretation, come to the conclusion that, to the extent that Article 4 imposes any obligations in respect of Nationally Determined Contributions, these are procedural obligations. Participants coming to this conclusion have, in general, relied on the ordinary meaning of the words, context and sometimes some elements in Article 31 (3) of the Vienna Convention on the Law of Treaties. I would like to know from the participants whether, according to them, “the object and purpose” of the Paris Agreement, and the object and purpose of the climate change treaty framework in general, has any effect on this interpretation and if so, what effect does it have?
[4] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Request for Advisory Opinion. Obligations of States in Respect of Climate Change. Public Sitting. Verbatin Record 2024/54. 13 Dec 2024, p. 40. Disponível em: <https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/187/187-20241213-ora-02-00-bi.pdf>. Some participants have argued, during the written and/or oral stages of the proceedings, that there exists the right to a clean, healthy and sustainable environment in international law. Could you please develop what is, in your view, the legal content of this right and its relation with the other human rights which you consider relevant for this advisory opinion?
[5] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Request for Advisory Opinion. Obligations of States in Respect of Climate Change. Public Sitting. Verbatin Record 2024/54. 13 Dec 2024, p. 40. Disponível em: <https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/187/187-20241213-ora-02-00-bi.pdf>. In your understanding, what is the significance of the declarations made by some States on becoming parties to the UNFCCC and the Paris Agreement to the effect that no provision in these agreements may be interpreted as derogating from principles of general international law or any claims or rights concerning compensation or liability due to the adverse effects of climate change?
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