PARA ALÉM DE MENDEL: incluindo uma proposta alternativa no ensino de genética

Legenda: Dois pesquisadores ingleses discutiram uma proposta de mudança na forma como abordamos genética nas aulas, sugerindo que sejam mais discutidos os fatores variáveis e integrados que se relacionam com as características dos seres vivos e o seu material genético. (Fonte: autora)

Estudo discute possibilidades de alteração na prática tradicional de ensino sobre genética adicionando as ideias do biólogo Walter F. R. Weldon

Juliana de Lemos

Bióloga e professora, completamente apaixonada por fotografia e invertebrados. Fiz minha graduação e iniciação científica pela Universidade de São Paulo com braços de polvos (moluscos são os bichos mais legais!) e já participei de projetos com educação formal e não-formal, desenvolvimento de materiais didáticos, divulgação científica e organização de congressos e feiras. Fui voluntária do Museu de História Natural de Londres e hoje dou aulas para turmas do Ensino Fundamental e Médio na mesma escola que me formei. Amo poder compartilhar com as pessoas sobre aquilo que aprendo e acho incrível como a Ciência está sempre nos ajudando a encontrar novas perguntas e respostas para o mundo a nossa volta. Em 2022, junto de alguns amigos professores, comecei um projeto de Trívia de Ciências e Matemática no colégio em que trabalhamos e tem sido uma experiência sensacional jogar com os alunos!

Instagram: @delemosju

19 de junho de 2023 | 10:00

Se você já participou de uma aula de genética básica, provavelmente já ouviu falar das ervilhas de Gregor Mendel. Esse monge agostiniano, que viveu durante o século XIX no que hoje chamamos de República Tcheca, queria entender como um indivíduo possui características semelhantes àqueles que o originaram. Para isso, ele fez experimentos cruzando plantas de ervilha (lembra da tal semente rugosa e lisa? Ou da amarela e da verde?). Como resultado, Mendel propôs leis que tentavam explicar a herança de características de uma geração para outra e é conhecido por muitos até hoje como o pai da genética. Seus trabalhos influenciaram fortemente essa área da biologia e chamamos de “genética mendeliana” aquela que segue as propostas feitas por ele. 

No entanto, ser famoso não necessariamente quer dizer que é a melhor forma de entendermos e ensinarmos um processo na Ciência, ainda mais se buscamos nos aproximar do que acontece na realidade. É justamente sobre esse ponto que Annie Jamieson (Museu Nacional de Ciência e Mídia, Inglaterra) e Gregory Radick (Universidade de Leeds) focaram no artigo Genetic Determinism in the Genetics Curriculum (em português: "Determinismo Genético no Currículo sobre Genética"), publicado na revista Science & Education em 2017. 

O mundo real é mais do que “dominante” e “recessivo”

Jamieson e Radick apontaram que enfatizar somente as explicações de Mendel, em qualquer nível de ensino, pode promover percepções deterministas com relação aos genes. O “determinismo genético” é a visão de que os genes são soberanos na definição de características em um indivíduo – exemplo: se a ervilha tem a combinação “AA” ou “Aa” no seu gene, com certeza ela terá sementes amarelas e só será verde se for “aa”. Mas será que isso de fato condiz com a realidade?

Quando olhamos para características com influência genética, não é tão difícil ver que, na verdade, o que mais existe é variação. Um exemplo: há genes que possuem papel na quantidade de melanina em nossos fios de cabelo. Mas não existem pessoas só com cabelos castanhos e outras, só loiros. Mesmo quando olhamos para uma cor, há variações naturais: castanho claro, castanho escuro, castanho com fundo avermelhado... E por aí vai. Isso ocorre porque há mais de um único gene que influencia na cor de cabelos e a interação deles não é igual em todas as pessoas. 

Hoje sabemos que as características de um indivíduo vêm da interação complexa e intrincada de fatores genéticos, ambientais e do desenvolvimento. Nesse sentido, os autores propuseram que o ensino de genética básica tomasse uma visão mais weldoniana, se referindo aos trabalhos de Walter F. R. Weldon (1860 – 1906). Esse biólogo britânico propôs que podemos ensinar genética nos afastando de ideias deterministas quando damos importância à variação e interação de fatores, ao invés de protagonizar quase que exclusivamente os genes.

Reformulando as aulas de genética

A fim de testarem a sua proposta, Jamieson e Radick colocaram em prática um curso com 10 atividades que foram aplicadas com alunos no início da graduação na Universidade de Leeds, na Inglaterra. Paralelamente, acompanharam um segundo grupo de alunos, do mesmo ano acadêmico, que recebeu um curso introdutório de genética ainda baseado nas propostas tradicionais de Mendel. As aulas do primeiro grupo seguiram uma proposta de currículo weldoniano que trouxe três temas com os seguintes focos: (1) mostrar a importância do ambiente; (2) dar ênfase nos processos de desenvolvimento; e (3) minimizar a ideia de que o gene sempre tem um único propósito de existência. 

Ao dar relevância para o ambiente no tema 1, eles apontaram quais condições internas e externas do organismo podem interferir na expressão de genes. Além disso, o próprio ambiente nunca é completamente estático, o que faz com que suas possíveis influências também estejam sempre mudando. Nesse ponto, eles tentaram não incentivar que seus alunos se tornassem “deterministas ambientais” (que ignorassem completamente o componente genético e acreditassem que toda característica dependesse só do meio), colocando os genes e o ambiente como igualmente importantes.

O tema 2 focou-se em apresentar aspectos básicos da biologia do desenvolvimento, argumentando que os processos envolvidos nela são importantes para entendermos como os genes interagem no mundo real. Aqui, os autores queriam ir além do processo de transmissão de material genético. Afinal, as características de um ser vivo não estão finalizadas e inalteradas desde o nascimento.

Por último, o tema 3, buscou substituir, nos discursos de alunos e professores, o uso da terminologia “genes para” por “genes envolvidos em”. Um exemplo disso seria trocar a frase "genes para determinar a cor dos olhos" por "genes envolvidos na determinação da cor dos olhos". Assim, ganhou-se mais espaço para falar sobre variações e interações, enquanto as discussões se afastavam da ideia de que todo gene está programado para gerar uma única característica, como se seguissem uma receita perfeita.   

Você pode acessar os materiais usados nas aulas, em Inglês, no Genetics Pedagogies Project

Por um futuro menos determinista

No final do curso, os alunos receberam questionários iguais e os que frequentaram as aulas weldonianas foram menos deterministas que os demais. Como isso tudo aconteceria no Ensino Básico? Será que teríamos respostas parecidas em outro país? É possível que tais fatores variáveis gerem novas demandas e resultados onde eles forem aplicados (o que, não ironicamente, vai na linha do que o próprio Weldon defendia, né?). Para confirmarmos, seria importante trazer essas discussões em mais locais e com diferentes alunos. Também seria muito legal inserirmos o assunto na formação inicial e continuada de professores de Ciências. Rever estratégias de ensino dentro da educação sobre genética é um passo importante para um futuro com alunos mais críticos, respeitosos e próximos de sua própria realidade.

Ficou interessado(a)? Leia o artigo:

JAMIESON, Annie; RADICK, Gregory. Genetic Determinism in the Genetics Curriculum: An Exploratory Study of the Effects of Mendelian and Weldonian Emphases. Science & Education volume 26, pages1261–1290, 2017. Disponível em <https://bit.ly/3HD3OmK>. Acesso em 24 fev. 2023.