Caso Beatriz e outros vs. El Salvador: Violação dos Direitos Sexuais e Reprodutivo das Mulheres na América Latina e Caribe

O caso Beatriz e outros vs. El Salvador[1] é importante para a compreensão das violações dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na América Latina e Caribe, um problema comum em diversos países da região. Em muitos contextos, as mulheres enfrentam dificuldades imensas para acessar serviços de saúde adequados, especialmente quando se trata da interrupção da gravidez, devido a leis restritivas e a falhas nos sistemas de saúde pública. Também se deparam com estigmatizações, racismo e humilhações.
O comunicado nº 92/2024 de imprensa, publicado em 20 de dezembro de 2024, da Corte IDH destacou que: “El Salvador é responsável pela violência obstétrica e pela violação do direito à saúde de uma mulher com gravidez de alto risco devido à falta de protocolos adequados de atendimento médico” (Corte IDH, 2024). O Tribunal reconheceu a responsabilidade internacional do Estado de El Salvador por não exercer a devida diligência na garantia do acesso a recursos judiciais efetivos (artigo 25), da integridade pessoal (artigo 5º), da saúde (artigo 26) e da vida privada (artigo 11) de Beatriz, em relação às obrigações de respeitar e garantir direitos e o dever de adotar disposições de direito interno, estabelecidos nos artigos 1.1 e 2, todos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), bem como por não cumprir as obrigações previstas no artigo 7.a da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a Mulher (“Convenção Belém do Pará”).
De acordo com os fatos narrados na sentença, em 2013, Beatriz, mulher jovem que vivia em situação de extrema pobreza, foi diagnosticada com uma gravidez na 11ª semana e considerada de alto risco porque estava sofrendo de doenças graves (lúpus eritematoso sistêmico, nefropatia lúpica e artrite reumatoide como doenças de base). Além da condição de saúde frágil de Beatriz, o feto era anencéfalo, o que significa que apresenta uma malformação do sistema nervoso central, não tem condições de sobreviver fora do útero, uma vez que a anencefalia é uma condição em que grande parte do cérebro e do crânio está ausente ou malformada[2]. Esse tipo de anomalia resulta em uma falta de desenvolvimento cerebral essencial para as funções vitais do corpo, como respiração e batimento cardíaco. A anencefalia é uma condição fatal, e a maioria dos fetos com essa malformação morre ainda no útero ou logo após o nascimento[3].
Na 14ª semana de gravidez, o Comitê Médico do Hospital que atendeu Beatriz solicitou opinião ao setor jurídico, considerando as possíveis consequências fatais do parto para a gestante e a condição de anencefalia do feto. Em resposta, a Procuradoria ressaltou o direito à vida do feto, a sua incompetência para emitir um pronunciamento e a necessidade de se nomear um procurador para representar os interesses do feto e exercer sua defesa técnica no caso (parágrafos 48 e 51 da sentença).
Após diversas tratativas no âmbito administrativo, a defesa de Beatriz impetrou mandado de segurança, solicitando a interrupção da gravidez para salvar sua vida, perante a Câmara Constitucional de El Salvador, que emitiu uma medida cautelar para garantir a vida e a saúde física e mental de Beatriz (parágrafo 56). No entanto, as semanas seguintes foram de continuação do debate judicial em torno da manutenção da gravidez, com a rejeição do mandado de segurança, considerando que não houve conduta omissiva por parte das autoridades acusadas (parágrafo 68). Devido à situação de risco em que se encontrava Beatriz, a CIDH e a CorteIDH concederam medidas cautelares (parágrafo 71) e provisionais (parágrafo 73) em seu favor. No dia 3 de junho, Beatriz entrou em trabalho de parto e teve que passar por uma cesárea (parágrafo 75). O feto anencefálico morreu cinco horas depois.
No caso de Beatriz, uma jovem mulher em El Salvador, a legislação restritiva sobre aborto contribuiu para o agravamento de sua saúde, uma vez que ela não teve acesso ao procedimento que necessitava, mesmo diante de complicações graves com sua gravidez. A CIDH solicitou medidas cautelares, destacando que a legislação de El Salvador, ao impedir a interrupção legal da gravidez, comprometeu diretamente os direitos à vida, à integridade física, à privacidade e à saúde de Beatriz, com implicações profundas também para sua saúde mental.
O caso, submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em janeiro de 2022, por meio do relatório de mérito nº 11/2022, sublinhou a violação sistemática dos direitos reprodutivos das mulheres por parte do Estado de El Salvador, diante da proibição legal absoluta da interrupção voluntária da gravidez, o que evidencia uma falha estruturante na proteção de seus direitos fundamentais. Neste caso, assim como o de Manuela vs. El Salvador, demonstra-se claramente como a omissão e as políticas públicas falhas podem contribuir para a violência obstétrica e para o desrespeito aos direitos reprodutivos das mulheres na região.
Os casos Manuela vs. El Salvador e Beatriz vs. El Salvador representam, portanto, marcos na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos na América Latina, evidenciando como a criminalização total do aborto pode resultar em graves violações aos direitos humanos das mulheres. Ambos os casos expõem as consequências letais da negação de serviços de saúde essenciais e da imposição de leis punitivistas que desconsideram a vida e a dignidade das mulheres.
A realidade salvadorenha, marcada por uma legislação extremamente restritiva em relação ao aborto, encontra paralelos preocupantes no Brasil, onde mulheres também enfrentam obstáculos significativos ao acesso ao aborto legal, mesmo nas hipóteses previstas em lei[4].
No caso Manuela vs. El Salvador, a Corte IDH reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Manuela, uma mulher condenada injustamente por homicídio após sofrer uma emergência obstétrica. O Estado negou-lhe atendimento médico adequado e um julgamento justo, violando seus direitos fundamentais. Já no caso Beatriz vs. El Salvador, a Corte reafirmou a obrigação dos Estados de garantir acesso a serviços de saúde reprodutiva, condenando El Salvador pela tortura e pelos sofrimentos impostos a Beatriz, que foi impedida de interromper uma gravidez inviável, colocando sua vida em risco.
Situações semelhantes ocorrem no Brasil. O Código Penal brasileiro, em seu artigo 128, autoriza o aborto em casos de estupro e em caso de risco de morte da gestante. Além dessas duas hipóteses legais, a ADPF 54, julgada em 2012, autorizou o aborto em caso de anencefalia (BUCCI, 2014). Assim, no Brasil, o aborto é crime, mas admite essas três exceções. Mesmo essas hipóteses permitidas sofrem inúmeras ameaças institucionais e sociais, dificultando o exercício pleno desse direito por parte das mulheres.[5]
O tema no Brasil está longe da pacificação. A chamada PEC do aborto (PEC 164/2012) pretende acrescentar a expressão “desde a concepção” no texto original do artigo 5º, da CF/88[6]. Assim, “discute-se se as hipóteses de aborto previstas atualmente poderiam ser afetadas, já que a inviolabilidade do direito à vida do feto estaria garantida desde a concepção” (BUCCI, 2024, p. 28).
A PEC do aborto parece estar em linha com um posicionamento mais rígido já adotado pela Câmara dos Deputados em junho de 2024 que aprovou a alteração do Código Penal com o projeto nº 1904/2024 equiparando “a pena para o aborto de gestação acima de 22 semanas à de homicídio – 20 anos de reclusão, quando houver viabilidade fetal” (BUCCI, 2024).
Diante disso, as decisões da Corte IDH nos casos Manuela e Beatriz, notadamente, trazem parâmetros importantes que visam a fortalecer uma agenda feminista não apenas no Brasil, como em toda América Latina, reafirmando que a criminalização total ou em determinadas circunstâncias do aborto e a negação de serviços de saúde sexual e reprodutiva constituem formas de violência institucional contra as mulheres e devem ser combatidas com políticas de atendimento humanizado, de acesso à informação às mulheres e de conscientização que previnam a violência estrutural e institucional contra as mulheres, garantindo-lhes efetiva e integralmente o direito à vida, saúde física e psíquica, liberdade, autodeterminação e dignidade.
Nesse sentido, a Corte IDH afirmou o dever dos Estados em estabelecer protocolos preventivos com clareza e segurança jurídica para os profissionais de saúde e que previnam danos à saúde da mulher (parágrafos 174 e 175). No Caso Beatriz, a ausência desses protocolos levaram à burocratização e à judicialização do caso, ampliando injustificadamente o tempo de espera para a interrupção da gravidez, em uma situação em que o tempo é de importância crítica.
Dentre as medidas de não repetição, a Corte determinou que o Estado de El Salvador deverá adotar todas as medidas normativas necessárias para estabelecer diretrizes e guias de atuação aos profissionais médicos e do sistema de justiça nas situações de gravidez que ponham em risco a vida e a saúde da mulher (ponto resolutivo 7 da sentença) e um plano de capacitação e de sensibilização aos profissionais de saúde dos hospitais com seções de atenção à maternidade, aos profissionais do sistema de justiça e demais agentes estatais que atuam na matéria. Referidas medidas devem servir também de orientação a todos os países do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
[1] Corte IDH. Caso Beatriz y otros Vs. El Salvador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 22 de noviembre de 2024. Serie C No. 549.
[2] Conforme BUCCI, “Anencefalia significa literalmente ‘ausência de cérebro’, embora nem sempre esteja caracterizada pela ausência total do encéfalo. Poderia ser conceituada como sendo uma rara má-formação do tubo neural, ocorrida entre o 16º e 26º dias de gravidez, originada pelo não fechamento adequado do tubo neural durante a formação embrionária, o que acarreta a ausência total ou parcial ‘dos tecidos recobertos’ pela caixa ou calota craniana, bem como a ausência total ou parcial desta”. BUCCI, Daniela. Dimensões Jurídicas da Proteção da Vida e o Aborto do Feto Anencéfalo. 1a. ed. Curitiba: Clássica Editora, 2014, p. 124.
[3] De acordo com a legislação de alguns países, como El Salvador, a gestação de fetos anencéfalos pode ser particularmente controversa, gerando debates sobre os direitos reprodutivos da mulher e os limites da legalidade do aborto, já que não há chance de sobrevivência para o feto. Muitas organizações internacionais de direitos humanos, incluindo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm se posicionado em favor da interrupção da gestação nesses casos, defendendo o direito da mulher à saúde, à integridade física e à autonomia reprodutiva.
[4] A violação de direitos sexuais e reprodutivos da mulher no Brasil é evidente também na prática conhecida como violência obstétrica. Apesar de tentativas esparsas para garantir direitos à mulher, tais como o parto humanizado, a presença de um acompanhante durante o parto, entre outros, não há uma lei federal que conceitue e puna a prática da violência obstétrica. A falta de norma específica impede que o tema ganhe “visibilidade” e impede o conhecimento sobre as ações consideradas violência obstétrica, de modo que “a falta de informação ainda é o calcanhar de aquiles na prevenção da violência”. (BUCCI; KOCH, 2017). Assim, é essencial a criação de uma “lei específica, com a menção expressa do termo, para chamar mais a atenção da sociedade para a realidade das mulheres gestantes e parturientes – e a dela mesmas”. BUCCI, Daniela; KOCH, Camila. Os Novos Parâmetros da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre Violência Obstétrica e os Potenciais Impactos para a Proteção dos Direitos das Mulheres no Brasil. In: XV Congresso Brasileiro de Direito Internacional, 2017, Florianópolis. Direito Internacional em Expansão. Belo Horizonte: Arraes Editores Ltda, 2017. v. 10. p. 313-331.
[5] Um recente caso ocorrido no Brasil que retrata o quanto o tema é controverso envolveu uma menina de 10 anos, vítima de estupro, que, em 2020, ao se submeter à interrupção de gravidez sofreu inúmeras ameaças e críticas por setores conservadores do sistema de justiça e por grupos religiosos. O caso evidenciou a interferência política e ideológica na saúde pública e no direito das mulheres de decidirem sobre seus próprios corpos, além da perseguição a profissionais de saúde que atuam dentro da legalidade (El País, 2020).
[6] Conforme BUCCI, o termo “desde a concepção” no texto constitucional traria “dois cenários possíveis: de uma restrição total ao aborto ou de ponderação com outros direitos igualmente protegidos pela Constituição Federal, tais como, o direito à saúde física e psíquica, por exemplo. Com relação a esses direitos especificamente seria possível debater se são abarcados por cláusula pétrea e, portanto, irrestringíveis, inclusive por emenda constitucional”. Sobre esses cenários e suas repercussões jurídicas e interpretativas, vide BUCCI, 2024. Disponível em: https://www.anpr.org.br/publicacoes/boletim/boletim-n7-2024/viewdocument/280. Acesso em: 10 abr. 2025.
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